27 de julho de 2013


Este blog, desde que surgiu como uma idéia meio boba, tem enveredado por um caminho que pouco a pouco foi se delineando conforme os textos iam se desenvolvendo: a tentativa de derrotar o tempo. O tempo, o tempo é o maior inimigo da humanidade, o grande problema, o vilão dos vilões, e se eu conseguisse pelo menos desafiá-lo, nem que fosse brevemente, estaria contente!

Sendo assim, não faz sentido que as postagens sejam organizadas cronologicamente - isso é desde o princípio ser subjugado pelo tempo! Por isso, graças à ajuda do meu amigo Barty, que é um mago da programação para web (te amo, Barty, muito obrigado!), estou disponibilizando este magnífico ORÁCULO!

A cada vez que a página for atualizada, um novo link será exibido abaixo, para uma postagem aleatória, e você não precisará ficar cavucando o blog por uma postagem legal. Teste a sorte!

(É claro, você pode explorar o blog cronologicamente, simplesmente descendo a barra de rolagem. É outra experiência, mas não há de ser ruim.)

O oráculo diz que você deve ler o post...



Boa leitura!

24 de dezembro de 2012

Dom Casmurro

E se a ópera não começa na primeira ária
mas sim já no solo, e depois sim vem o duo
terníssimo?

A vida, em seus mundos,
é uma ópera, viste; pode ver.
E se o tempo, nos olhos fundos,
insiste em, com mistério,
congelar, se reter,
faz-se não importar
um adultério, traição,
um beijo cortês,
um olhar matreiro.
Trair é fazer de dois três,
mas quem é o terceiro,
então?
Quem sabe eu, ou mesmo tu.
Não.
É impossível trair em amor:
Não há culpa, dor, nada se faz,
só há, no mais, Capitu.

20 de maio de 2012

Verdade

E vai lá o homem à lua
e é sua ela agora,
pois a partir da hora
em que se torna crua,
em que a coisa se desvela,
é do homem. Fim.
Pois sim, que sobre ela
por mais que se insista
não se sabe a metade,
não se tem pista;
se queriam a verdade,
se era esta a meta,
por que cientista?
Mandassem um poeta!
Logo desse lá a vista
com crateras, com vazio,
espaço deveras,
estrelas, mais de mil,
num pedaço macio
de papel lunar
em palavras meras
iria descrevê-las,
ou ao menos tentar.
Escreveria do astronauta
o gracioso bailar,
e poria em linhas
a cratera mais alta
e o rolar das pedrinhas
quando, a ela escalar,
desse, surpreso, falta
do mar.
Mandaram (pena?) cientista,
que logo fez esquema,
passou trena, pesou rocha,
sem qualquer ponto de vista
anotou cada minério.
Está ai o problema:
ao se ter nua resposta,
sobre a lua tanta pista,
perde ela
(pois revela)
todo o seu mistério.
Mas venha cá quem vier,
até quiçá, militar,
ao levantar o olhar
e perceber, rente,
o surpreendente domo,
por mais que se tente
não há mesmo como
ser somente voyeur.
Em conquistas quaisquer
ideias surgem,
ideias somem.
Certo é que aqueles homens
que à lua foram com alfas e betas
foram cientistas,
mas voltaram poetas.

27 de junho de 2011

A Onda

De velha já basta eu - é o que diz a mulher que, com um gesto ligeiro, abandona o aparelho na calçada. Já não funciona há algum tempo, o tal rádio antigo, guardado há tanto no quarto inútil onde se conservam as coisas de que já não lembram mais os moradores da casa, mas de que não tiveram coragem pra se desfazer. Hoje, não se saberá por que, a senhora dona da casa resolveu criar coragem e abandonou-o na calçada, em frente ao prédio. Pode-se imaginar que não tem mais valor sentimental, nem prático, já que há aparelhos de rádio muito mais funcionais e modernos, e o conserto de um aparelho antigo como este sairá mais caro que um dos novos, que tão melhores aparentam ser. Alguém haverá de querer este trambolho - pensa ela enquando fecha o portão do prédio atrás de si.
Pois às vezes as senhoras donas de casa têm razão, e dois homens que passam em frente ao recém-referido portão encontram com os olhos o rádio e, com os mesmos olhos a se encontrar, resolvem sem nada dizer que ele pode ser valioso. Levam-no.
Há em determinada esquina um cartaz pintado com tinta preta numa placa de madeira, onde lê-se, com dificuldade, a frase "Compro antigos - brinquedos, rádios, telefones, curiosidades e coleções". A porta na parede, logo abaixo do cartaz, leva a um cômodo minúsculo com as mais variadas espécimes de antiguidade, sendo na maioria os artigos descritos no cartaz. Os homens chamam a pessoa que está lá dentro pelo nome e ela sai. É uma mulher gorda, com uma roupa pastel e cheiro de mofo. Ela se mescla às antiguidades, e por isso os homens não a viram a princípio.
Depois da negociação, o rádio é vendido a vinte reais. É um preço justo para os homens que só tiveram o trabalho de carregá-lo por dois quarteirões e para a mulher, que não o venderá tão facilmente - pois precisa de lucro e não tem muita clientela naquela rua.
Por estas razões, no dia seguinte, ela vai até a feira de antiguidades, no centro da cidade. Entrar na feira é como andar no tempo, pois não só as coisas, mas também as pessoas que ali estão exibidas são de outras épocas , de outras cores, geralmente tendendo ao sépia. Ela chega e vai de encontro a um senhorzinho de óculos, suspensórios e boina xadrez. Ele é tão antigo quanto as coisas que vende, e pode muito bem ter utilizado alguma delas na época em que ainda eram utilizadas.
Depois da negociação, o rádio é vendido a cinquenta reais. É um preço justo para a mulher, que teve o trabalho de negociá-lo duas vezes e trazê-lo até a feira, e para o velho, que precisa de algum lucro, mas não precisou carregar o rádio e nem precisará.
Ao fim da tarde, um rapaz de óculos e mochila se aproxima do rádio. Ele parece gostar muito, se admira com o desenho antigo do aparelho, sente um cheiro que é familiar, cheiro de velhice, cheiro de avô; pensa que consertar um apetrecho destes é coisa relativamente barata, e que seria muito charmoso ouvir música nesse aparelho tão antigo. Pode-se pensar que alguns jovens não conseguem mesmo se adaptar ao tempo, e querem tanto voltar alguns anos que, por isso, se rodeiam de objetos antigos. Seria este um caso.
Depois da negociação, o rádio é vendido a setenta reais. É um preço justo para o velho, que não teve nenhum trabalho, e para o moço, que sabe que antiguidades, por serem raras, são caras.
O rapaz chega em casa com o novo artefato, limpa e leva para a sala. Chama os pais - eles hão de achar interessante, pois devem ter tido contato esse tipo de aparelho algum dia. Assim que põe os olhos no rádio, a mãe imediatamente exclama:
Olha, mas que coincidência! Coloquei ontem mesmo um rádio desses na calçada!

12 de junho de 2011

Lua Cheia

Corre, pula, salta,
vira, sacode a areia
do pé, que só leva a falta
de qualquer sapato ou meia.
Escala, fala, fala,
mas, tão logo se cala,
abre riso de lua cheia,
riso longo que serpenteia
no rosto curto de menina.
Corre, pula, Janaina!

5 de junho de 2011

Doma

Com uma ordem simples, um movimento de mão do menino, ela o obedecia. Atravessava o pequeno riacho, subia rapidamente uma árvore, esticava-se e tentava agarrar uma galinha. Era completamente submissa a ele. Ao mais simples comando diminuia, crescia, rastejava-se, levantava vôo na forma de um pássaro.

Enquanto isso a mãe observava de longe, da janela, o divertido espetáculo que era o filho a brincar com a própria sombra.

28 de maio de 2011

Relatividade I

- Com licença, garçom, mas tem sopa na minha mosca.

- Não era ensopada?

- Não, cozida ao vapor.

- Mil desculpas então, senhor. Vou trocar. Perdoe o inconveniente!

- Tudo bem, tudo bem, esse ainda é o melhor restaurante do brejo. Onde mais um sapo pode comer uma mosca tão saborosa por esse preço?

22 de maio de 2011

Bolo

Olha, mas não vê. Procura, vasculha. Os músculos já lhe doem, razão pela qual se move um pouco, troca a posição das pernas e logo dos braços. Os olhos também já não estão tão bem, e as mãos esfregam as olheiras. Olhando de longe, parece uma escultura, estátua, parada enquanto tudo ao redor se move; situação que dialoga com a dos já referidos olhos, que parecem mover-se sem parar enquanto tudo em volta deles estagna.
O ambiente ao redor cada vez mais se alenta e o movimento pouco a pouco começa a cessar, e o corpo, que mesmo com os olhos vacilantes ainda permanecia parado, move-se, como se quisesse contrariar o entorno, quase brusco: suspende-se todo sobre si, e se solta. Um suspiro. Os pulmões se enchem totalmente de ar e o liberam, mas com o ar parece sair também algo mais.
Levanta-se, olha, mas não vê. Procura, vasculha uma última vez, mas já sem esperança: a pessoa por quem está a esperar não vem.

6 de abril de 2011

Poema com sono

Tento abrir, o olho fecha;
tento abrir, sai um bocejo.
Num lampejo, vejo a mecha
do cabelo, loiro açoite,
e ao vê-lo vem desejo
(não evito, é o ensejo)
de sonhar com ela à noite.
Mas é sonho, é só sonho,
e ao acordar me exponho;
já tardio, me dou ré.
A sonhar, dormindo em pé
fantasio, e antes fosse,
que este verso, sendo doce,
fosse escrito com café.

28 de outubro de 2010

Central Vazia (ou A Solitude)

Correu até a borda da varanda, olhou lá pra baixo, na rua, observou os carros, que, desgovernados por não terem mãos nos seus volantes nem pés nos seus pedais, tinham se chocado entre si e com a paisagem. Olhou para o horizonte, os olhos vasculhando a imensidão procurando por algum movimento que não o das nuvens no alto. Correu escadaria abaixo, procurou pelo porteiro, pelo jornaleiro, mas não encontrou. Esperou um ônibus por um minuto – talvez menos – mas impaciente com o silêncio que, num zumbido ensurdecedor, lhe penetrava os ouvidos, desatou a correr pela rua, em direção ao único lugar que lhe rendia um fio, um filete, de parca esperança. Entrou, ofegante, com ânsia, na Central do Brasil. Ninguém.

Saiu pelo portão, agora já com mais calma, devagar, de cabeça baixa, e olhou para o céu como se se, só então, se conformasse, e até como se gostasse um pouco da idéia, como se fosse uma escolha própria. Era a única pessoa existente na face da Terra.

1 de outubro de 2010

Caixa de Pandora

Contra o chão da calçada o homem se arrastava e se encolhia pra se proteger das pancadas do policial. Um círculo de pessoas se formava em torno do bizarro espetáculo de violência, mas o fardado não se intimidava - na verdade o público lhe fazia aumentar ainda a convicção dos movimentos.
Batia com força, chutava com o bico do coturno o homem que, magro, sujo, de farrapos por veste e nada nos pés, não abria de jeito nenhum a mão. O punho cerrado não cedia, por mais que o policial vociferasse maldizeres e ordenasse que abrisse. A mão, por sua vez, só crispava-se mais e mais em torno da prova do crime que procurava o oficial.
A surra começou a ficar sangrenta quando entrou em cena o cassetete. O bastão subia e descia no ar, e o rosto do mendigo se desfigurava e escurecia a cada descida. Nenhum dedo da mão dele ousava afrouxar. Nenhum observador ou passante ousava ajudar, tampouco.
Eis que, depois de considerável tempo, contra o negro do chão, do sangue e da mão, que, inerte, relaxou, escapou por entre os dedos duros o segredo tão preservado: uma pequena borboleta azul voou sobre o corpo e sobre a multidão, e sumiu contra o anil do céu.

2 de setembro de 2010

Alvoroçer

Cada um está em seu lugar. Os primeiros fregueses da manhã, os olhos ainda apertados, indo para o serviço ou simplesmente adeptos do cedo acordar, a bocejar no balcão; a menina que recebe os pagamentos no caixa, a sorrir simpática e um tantinho sedutora, esperta, mais clientela retorna, mais comissão - comissão é a estratégia de ouro num pequeno negócio; os dois rapazes do balcão, um simpático, sorriso no rosto cansado, o outro carrancudo mas organizado como uma abelha no estoque e cozinha; eu, como sempre, do outro lado da rua, a olhar tudo e fumar um cigarro.
Meu trabalho se resume a pagar os funcionários, não permitir que nada saia do controle e, no mais, observar e fumar. Observo o efeito da manhã nos transeuntes, nos clientes e nos funcionários deste pequeno estabelecimento: a manhã silencia. Enquanto a tarde chama um diálogo produtivo e a noite chama um desmedido, selvagem, a manhã ainda carrega consigo um pouco do solipsismo onírico, um pouco da intimidade do leito, da solidão do sono, da solitude silenciosa da madrugada. Então as pessoas se calam. Falam só o necessário através das suas gargantas roucas. "Café", "puro", "pois não", "bom dia", "cinqüenta centavos", "bom dia", "pingado", "bom dia".
Até os jovens que trabalham pra mim, que a essa altura já são seres da alvorada, silenciam: o sorriso hospitaleiro, a organização minuciosa, o olhar nos olhos, inocente mas com promessa de sensualidade, tudo isso é envolto pelo mais denso silêncio - mais até que o silêncio madrugal, que não se percebe, pois não se precisa tatear, já que tudo está imóvel. Esse silêncio da manhã é um silêncio que se precisa (não) ouvir, precisa-se atravessá-lo. Não há ecos nas primeiras horas da manhã. Cada som é prontamente engolido pelo silêncio tão logo tenha sido entoado.
Observo por um longo tempo a clientela e meus empregados realizarem sua dança sem música, sua cena sem trilha sonora. Dou um trago no cigarro, e ao fazê-lo posso ouvir o fumo estalar, queimar fazendo barulho de destruição, de consumação. Posso ouvir o som da chama, o som do queimar isolados como ilhas no meio do mar de silêncio que afoga a todos os presentes. Então começo a ouvir outra coisa. Está vindo nesta direção, mas muito distante. Vem aumentando, crescendo e encorpando, um tipo de burburinho, um conjunto de sons diferentes muito distante, quase imperceptível a princípio, vindo de todas as direções. Vem como uma infestação, dominando bem devagar as ruas, casas, rios, céu e terra, de todos os lados até cercar a pequena padaria, e, por fim, a toma. Acaba-se o silêncio: os sons de conversas, automóveis, animais, um certo cochicho do mundo passa a se ouvir o tempo todo, em todo lugar. O silêncio denso se esvaiu, e agora as pessoas até se locomovem mais rápido pelo espaço que ele ocupava. As pessoas despem-se do pouco que lhes restava da subjetividade intimista em que estiveram imersas durante a madrugada e revestem-se dos seus arquétipos preferidos, geralmente barulhentos.
Acendo mais um cigarro, mas este queima em silêncio.

10 de agosto de 2010

Oásis

"Vinha caminhando pela rua (...), e a primeira coisa que ele viu foi o largo macacão de lona azul-escuro, com uma alça meio frouxa, quase deslizando pelo ombro e deixando mostrar mais a camiseta branca que o cobria, além dos seios e a barriga, é claro. Embaixo, tênis e um andar patético, de pés imperceptivelmente voltados pra dentro e com passadas preguiçosas, arrastando um muito pouco o pé no chão a cada passada. Os braços compridos e sem vida balançavam mais que o necessário, e numa das balançadas, sem perder o balanço, o braço direito veio até o rosto, e as costas da mão encontraram o nariz esmagando-o, deformando o desenho que as poucas sardas faziam, e liberando assim o som engraçado de uma fungada. Os olhos castanhos, assustadoramente escuros, grandes e bobos, que num primeiro momento tinham pálpebras relaxadas e olhar distraído, apertaram-se muito mais que o necessário durante a fungada, e a boca fina, que já tinha um meio-sorriso só do lado direito, franziu-se toda para este mesmo lado. O gesto foi lindo, uma fungada expressiva, que contraiu todo o rosto dela pra depois deixá-lo voltar, devagar, à expressão despreocupada e idiota que impressionou tanto o observador. Logo depois da fungada ela balançou rapidamente a cabeça pra um lado e para o outro, sacudindo os cabelos da mesma cor dos olhos, meio embaraçados, um tanto cheios, espalhando-se pelo ar sem um formato definido até quase tocar os ombros. Ela era linda. A alça do macacão caiu, enfim."

26 de julho de 2010

Lívida

Branca;
já teu nome te decanta.
Falta até que não faz tanta
coisa assim de uma vez.
Linda, lírio, pele em tez,
e a lingua alinha e outra vez
eu não sei como é que se diz
'delírio' em português.

Tanto!
Teu nome me entrega e eu canto,
mas volto logo pro meu canto
pensando em esquecer de vez..
Linda, lírio, pele em tez,
e a lingua alinha e outra vez
eu não sei como é que se diz
'delírio' em português.

24 de julho de 2010

O minuto de cinco anos

"Abre a porta e sai sem rumo, anda por ruas e estradas esmas e descobre um novo caminho pra chegar até onde nunca havia estado. Conhece novos sons, novos rostos, novos gostos, conhece novos conheceres. Entende que ir e voltar são mais ou menos o mesmo, e que não há de fato um 'lá' nem um 'cá'. Dá. Vai até onde consegue, pelo menos pra descobrir que também não há fim. A esmo, vai. Vai!"

Ao que o outro (ou será o mesmo?) responde: "Ai, espera só um minutinho..."

19 de julho de 2010

Pospotência

E, na última página, uma frase boiava solitária no meio de um plano branco, dando (por tirar) sentido a tudo: "Tudo nesse livro pode estar errado."

30 de abril de 2010

Mergulhador de Aquário

Marina já ao nascer recebeu dos pais o nome que lhe definiria até sua morte. Quando criança, passava a maior parte do seu tempo na praia, sentindo o vento salgado que soprava de longe, do horizonte. Vento que acariciara baleias e sereias, rostos de pescadores e palmeiras de ilhas desconhecidas e trazia pequenas moléculas de tudo isso para ela, que por sua vez as capturava com seus braços abertos. Cresceu, e entrou no mar, ao encontro do que só experimentara até então com a pele: tornou-se mergulhadora profissional.
Não havia medo, não havia receio. Ela era um peixe, ou melhor, uma gaivota curiosa e sem fome, que mergulhava decisiva, não pra devorar criaturas marinhas, mas pra observá-las de muito perto, com os olhos arregalados. O mar era um território conhecido, onde se sentia a vontade e acolhida. Nadava como se fosse, também, feita de água salgada, como se, quando saísse do mar, precisasse colocar uma máscara pra respirar aquele ar tão leve, que deixava seu corpo tão pesado.
Foi contratada por um grande aquário para mergulhar ao tanque das tartarugas e bater fotografias de divulgação; ao descer, desesperou-se. Mergulhar num aquário, apesar de enorme, era muito diferente de mergulhar no mar. Era uma garrafa, uma caixa claustrofóbica, sem saida, escura; seu corpo estava mais pesado e ela desmaiou.
Seria agora hora de um herói entrar na história, alguém rápido, um bom nadador, mergulhador profissional de aquário, surgir por entre a âncora falsa decorativa, no meio das tartarugas-marinhas, ou melhor, das tartarugas-de-aquário, e salvar Marina. Mas não, ninguém veio... Como se sabe, não existe tal coisa, um mergulhador de aquário.

Mergulhador de Aquário (addendum)

18 de abril de 2010

Fãs

Todo galã tem suas groupies. Este tinha também, e tão logo aparecia, elas gritavam a plenos pulmões, exaltando-o. Mas não eram gritos comuns:
- Aaaaaaahhh!! Gordão! Gordão! Gordão!!
E iam a loucura. Ele fazia uma firula e elas se animavam mais, gritando em êxtase.
-Dentuço! Dentuço!!!
No meio dos gritos podia-se até ouvir uma tiete gritando sozinha, mais alto que as outras:
-Seu balofo orelhudo!!
Ou até:
-Adoramos sua bunda obesa!!!

E lá ia ele, contente com a ovação, sabendo-se certamente o elefante mais bonito da savana.

13 de abril de 2010

Olhar (a) fundo

A menina disse, distraida, displicente, daquele jeito sonso que faria qualquer garoto se apaixonar, que gostava de olheiras. Desde esse dia, e por isso, o menino - que era apaixonado por ela - parou definitivamente de dormir. A cada dia ele tomava mais e mais café e remédios pra ficar acordado, e até algumas drogas, quando ficava mais difícil manter-se de pé. Quando suas pálpebras estavam quase cerrando-se e a imagem dela começava a surgir num princípio de sonho bom, ele as abria com toda a força e permanecia acordado. Teria as maiores olheiras que alguém já vira, e ela o amaria.
Ela, ainda assim, não reparou, e depois de cinco dias acordado, o garoto teve um problema fatal por falta de oxigenação no cérebro. Ele, já algumas horas antes de morrer, só balbuciava coisas sem sentido e o nome da menina.
Já no velório, ela olhou fixamente para o rosto castigado pela loucura e vigília forçada do menino e reparou: ele era lindo. Chorou um pouco por nunca ter se permitido conhecê-lo, mas de repente viu num canto o melhor amigo dele, com os olhos muito fundos de tanto chorar.
Apaixonou-se na hora.

7 de abril de 2010

Anti-Edimion

Acordou depois de um sono longo, daqueles de que se acorda tonto, sem saber direito se acordou ou se nasceu. Caminhou cambaleante, apoiado na parede e na própria testa, até o banheiro, onde lavou o rosto contraido pela claridade forte do mundo externo às suas pálpebras. Café. Dormira tanto que não desejaria dormir nunca mais, assertiu em hiperbólico pensamento.
O dia aconteceu, a noite chegou. Não sentiu sono, nem com a madrugada embaçando lentamente (a madrugada é sorrateira, assim como seus transeuntes) as vidraças com seu frio úmido. Deitou, de qualquer jeito, às vezes o sono vem sem esperarmos; estamos a pensar na morte da cabrita quando sem querer os pensamentos são lentamente, vulpinamente retirados dos magros dedos da razão e ficam livres: a cabrita ressucita, o funeral se torna uma festa, o cemitério agora tornou-se sua casa (mesmo que não pareça com ela) e estamos com a cabrita, fumando passas ao rum num cachimbo de pistache. Já não tem volta: estamos dormindo.
Mas a cabrita continuou mortinha. Não se sabe se a razão resolveu segurar com mais atenção essa noite ou se aquele café lá na manhã anterior tinha sido deveras forte, mas o sono não veio. Continuou na cama, insone, a pensar "sabia que não deveria ter dormido tanto ontem". A aurora, depois de uma longa noite, dedilhou o horizonte e o dia veio, acabando com a possibilidade de talvez dormir. "Hoje à noite pelo menos durmo bem", foi o pensamento que guiou os passos até o banheiro e que passou direto pelo bule de café.
Outro dia aconteceu, outra noite chegou. Mais uma vez deitou na cama e não dormiu. Como podia ser, depois de mais de trinta e seis horas sem dormir? O corpo humano não costuma agüentar desperto por mais de quarenta horas, foi o que descobriu na enciclopédia quando desistiu de dormir. O recorde é de quatro dias e mais um pouco. A noite começava a ficar entediante. Agora sim entendia por que dormimos à noite: não se tem nada pra fazer. Leu até o amanhecer e depois de lavar o rosto, jogou o pó de café no lixo.
Mais um dia aconteceu, e mais outro, e mais duas noites passaram sem que dormisse. Algo estava errado, e não era possível que fosse a enciclopédia. O médico lhe receitou uns calmantes e uma conversa com um psicanalista. Os calmantes foram comprados e tomados, e mais um dia e uma noite passados em vigília. A situação estava ficando complicada, o médico já não acreditava na história.
Situações extremas, medidas extremas. Já não pensava com clareza, precisava dormir! Estava muito perto de enlouquecer; as mãos a tremer, os olhos a afundar-se nas olheiras pretas, sulcos redondos amarelecidos que deixavam seu rosto ridiculamente pálido e amedrontador. Não podia continuar com isso. Fechou as janelas e as portas, e colocou o colchão ao lado do fogão. Abriu todas as saídas de gás. Conforme o metano ocupava o ambiente, menos oxigênio sobrava pra ser respirado, e a figura deitada de pijamas, sob os lençóis, numa cama improvisada no chão da cozinha, pôde sentir a atividade do seu cérebro se reduzir, a névoa onírica tão conhecida começar a apoderar-se das percepções. Os olhos semicerraram-se. Finalmente.....
Mas não. Algo aconteceu, e nada pior, pensou desesperado logo depois, poderia ter lhe acontecido nesse momento: acordou do sonho.

6 de abril de 2010

texto do autor.

Não, não existe nenhum texto de não-ficção aqui. O porquê não era tão certo; agora descobri, eu não existo. Não existo fora das minhas histórias. Não existo fora das minhas mentiras, fora das minhas invenções, dos meus personagens - aqueles que só existem em palavras, aqueles que vivem através do meu corpo (ora, que absurdo!, como se os primeiros também não vivessem..).

É impossível, pessoas existentes, viventes ou imagináveis, ler o que eu escrevi, sentir saudades de mim, me achar estranho, gostar de passar um tempo comigo, se apaixonar por mim. Não há um eu. Surpresa! O mágico sempre esteve desaparecido. A verdadeira mágica era mostrar-se, sem podê-lo.

E, aos leitores sagazes, não se animem: não sou quem vocês imaginam estar a escrever esse texto. Ele (o texto? ou o 'quem'? fique a ambigüidade, que é melhor) é só ficção também. Eu, que vos digo estas coisas, sou um mero personagem, sem rosto, sem nome, mas com essa característica: escrevo, conto histórias, minto e não existo além dessas coisas. Deixarei de existir (ou não?) em algumas linhas, e o blog continuará ai, abandonado, pois o autor dele sou eu.

Que besteira.
Só há ficção.

15 de fevereiro de 2010

Acabou a festa.

Não aguento mais, chega. Agora chega mesmo.

12 de janeiro de 2010

Sadismo sentimental

Estive a observar a cachoeira por um longo tempo. Toda a água caente, interminável, da pedra - quem, por um momento, pensaria que tal rocha pudesse verter água? -, não me deixou outra escolha. A cascata forma, aqui embaixo, um poço, um pequeno espelho d'água, onde me apraz nadar.
Ela, entretanto, continua lá em cima, do alto da cachoeira, a fonte. Estive a olhá-la por um tempo, silente, mas ainda não pude fazer tão difícil escolha: continuo a nadar no belo lago formado pela queda d'água ou faço com que ela, a pessoa que está lá em cima, deixe de chorá-la?

22 de dezembro de 2009

Lágrima

Seu devir é um breve rubor acompanhado de um arrepio, cujas causas, desconhecidas, são o único conhecimento possível no momento observado. O entrecortar ansioso da respiração anuncia, sem erro, o fenômeno que seguirá; sente-se algo subir e percorrer a extensão do corpo e inundar o momento: o espaço e o tempo. Ela brota, vindo de lugar nenhum e instantaneamente (sendo, assim, inespacial e atemporal); sem que se queira, mas inimpedível; abrupta e ao mesmo tempo cálida, confortável. Ela reflete o mundo, iluminada por ele, mas o rejeita, pois ele é a causa de sua sôfrega existência. Uma parte liquefeita daquele que a chorou, mas – assim como a poesia está para a prosa – condenada a se conter, concentrada, condensada, como se a tristeza de todo um corpo pudesse reunir-se num só ponto e separar-se desse corpo. Desliza cortando o rosto, desprende-se dele, molha o chão. Contradição e tautologia, metáfora e metonímia, vontade e desejo. Tudo o que se foi neste momento reunido numa gotícula, que se faz em milhares de frações ao se espatifar no solo, espalhando por ele todo o sentimento. Logo vem outra.

18 de novembro de 2009

fragmento de carta

Começar a escrever é ato inusitado, impreciso. Tateio o papel como um cego, seguro a caneta como uma criança; não sei bem como começar a traçar a folha, mas sei que depois do primeiro empurrão deslizarei até o pé da página, como se fosse uma ladeira. Escrever sempre acaba sendo uma atividade extática (em êxtase), como sonhar ou se embriagar: em certo momento perde-se o controle e algo te leva pelas mãos - neste caso literalmente - até que se recobre a consciência e torne-se estático (em estadia) novamente. Nesse sentido, seu escrever apolíneo e definidor de quem você é talvez contraste e se articule bem com o meu, dionisíaco, e destruidor de quem eu sou. Escrever é algo trágico, afinal.
Li novamente sua última carta e me espantei com o quanto ela é permeada pela questão do tempo. Quando você diz que já não mais se sente como antes, não mais encontra uma continuidade entre a sua imagem solidificada e o que agora se delineia em você, confirma a sua obsessão no escrever - definir-se -, mas também a minha - vencer o tempo. Sei que você pensa que nunca vou conseguir, mas pensar em "nunca" já é pensar dentro da lógica do tempo, e não me faz sentido. Mais interessante é poder ver como a escrita, e mais especialmente a carta, exerce um papel nas duas procuras.
Recebi em casa, há pouco, uma carta que havia postado em março, mas que nunca chegou ao destino. Vagou por seis meses como uma mensagem numa garrafa, sabe-se lá por que mares, como uma capsula contendo minha subjetividade. Alguém poderia ter aberto e lido sentimentos, sensações, verdades e mentiras. Se sentiria contemplado ou emocionado, e talvez me buscasse pra retornar-me, com uma ponta de curiosidade: quem seria o náufrago que escreveu a mensagem? Mas, menos romanticamente, chegou pelo correio. Ao abrir, entretanto, arrebatou-me aquela sensação: foi como experimentar em mim meu passado, como voltar no tempo. Uma memória involuntária (aquela de Proust) fez com que meu passado não só viesse à mente mas, naquele momento, fosse real. Olhei o envelope, e a marca vermelha do carimbo não poderia expressar melhor tudo o que sinto e penso agora: "Mudou-se".
Receber esse envelope, assim como observar a sua carta - escrita em duas partes separadas por dois meses -, leva-me a olhar, agora, o mundo com um olhar mais heraclítico, a perceber melhor que de fato tudo está em constante movimento, como você disse, um acontecimento, um "estar sendo". Mas ao mesmo tempo me mostra que tudo permanece, tudo retorna: o tempo não é mais um devorador, não faz mais sentido que o passado seja perdido e futuro seja potência, linearmente, pois não existem mais essas coisas separadamente. Experimentei o passado no presente, através da escrita. Se podemos guardar o tempo em cápsulas e assim sair da linha, então o tempo como conhecemos precisa de manutenção.
Percebo agora que não "estamos sendo", não "fomos" nem "seremos". Precisaremos de um novo tempo verbal pra dizer as três coisas ao mesmo tempo, pois só assim fará sentido. Conseguir dizer isso é papel da linguagem, e acredito que principalmente da literariedade; sendo assim, continue a tentar definir-se na escrita, [NOME], parece um bom caminho.

(...)

19 de outubro de 2009

Identidade

Perdera tudo em menos de seis meses: os últimos vestígios dos pais, o emprego massante e maquinal, todo o dinheiro mais barato que tinha, as amizades mais caras, o relacionamento mais ou menos amoroso que acabara construindo, quaisquer motivações pra estudar, trabalhar ou praticar as atividades que mais gostava há alguns meses.
Ainda assim, concordou em ir àquela festa aquele dia. Os poucos amigos que lhe restavam insistiram pra que fosse, que ia se divertir, ia esquecer os problemas, rir, que podia arrumar um par, que sair de casa faz bem, que ...
Na porta do estabelecimento, o engravatado musculoso estende a mão e diz a palavra que no momento lhe é possivelmente a mais inusitada: 'identidade'.
As mãos vasculham o bolso traseiro, vãs. Não está lá. Não há documento ali. Não há nada ali. Súbito, esquece seu nome. Não fazendo nada, não tendo nada, não conhecendo ninguém mais, só tinha o próprio nome; e agora perdeu, esqueceu em casa. Sua identidade não está ali.
Anda de volta (pra onde? não sabe.), na chuva, sem saber se é homem, mulher, criança, se é a chuva ou se é o cavaleiro inexistente da armadura branca, de Calvino. Quis, andando sem saber pra onde, ser como as pessoas que andam com a identidade no bolso, mas ao apalpar, entende porque não poderia.
Armaduras não têm bolsos.

15 de outubro de 2009

"About the souffle", ou A beaucoup de souffle

Chove, e chuva sempre significa desolação. Sempre hoje. Houve já aquele tempo de brincar na chuva ou lá andar de bicicleta, chegar em casa ensopado e logo ser mandado em direção ao banheiro, em vocíferos.
Agora sou o tempo todo acossado, por tudo e todos. No tempo em que pegava chuva, a palavra 'acossado' me traria alguma sensação que não digo, pois não sei, só ouvi a palavra em adulto, talvez, e já com o signo talhado. Hoje me traz Godard, e mais ainda agora.
Porque meu quarto é o contrário do quarto que o filme mostra por mais de vinte minutos, ali com a intenção de poder filmar o íntimo, que falta(va) ao cinema, o desejo de um cinema-verdade; aqui, sem intenção: não há privança, intimidade no meu quarto, nada interior, secreto, pessoal. Não há nada aqui senão a ausência da chuva. Por muito mais de vinte minutos (ou muito menos, não se saberia), minha câmera mostraria um quarto fora do tempo, um retrato da eternidade e do nunca ter sido. Se alguém pudesse pintar um quadro meu agora, pintaria o próprio tempo.
Em vez de falar de chuva falei do filme e falei do quarto, mas sem se enganar, mais, a chuva envolve (e acossa) tudo isso. O filme, o adulto, o quarto, a desolação, tudo aqui é só não-chuva. Só quem ficou do lado de fora do quarto - que é o lugar da chuva, chuvas não entram em quartos, nem quando estão a perseguir alguém - foi a criança. Só quem não é acossado, e nem Acossado, é o garoto molhado que não sabe o que significa essa palavra e nem quem é Godard e nem quem é Truffaut.
Tenho vontade de abrir a porta e tomar um banho de chuva, mas o barulho parou, e eu tenho medo de já ter estiado. Ou pior, de não chover nunca mais.

1 de outubro de 2009

Se você, por entre as linhas

Foi até a banca de jornais e calmamente escolheu aquele volume cujo título mais interessava. Pensava, se o título é interessante, o escritor é bom. Colheu como fosse um pomo frágil, levou-o ao nariz e cheirou. Pagou. Andou até um banco próximo e abriu na primeira página, curioso, e qual foi sua surpresa ao ver ali, impressos, em tipos absorvidos pelo papel certamente antes de tê-lo tocado com as mãos e cheirado, todas as suas últimas ações, desde ir até a banca até surpreender-se. Parou de ler.
Agora está mirando algum lugar fora do papel, confuso, pensando e concluindo que acaba de presenciar uma absurda coincidência. Olha de volta para o livro e continua lendo, na expectativa desesperada de ler outra coisa senão a si mesmo, mas é inútil. O livro é sobre ele. Respira fundo, mas bruscamente expira exasperado, pois inspirou ao mesmo tempo em que leu a descrição deste mesmo ato. Testa; levanta o braço esquerdo. É, na verdade, incrível! Tudo o que está escrito corresponde exatamente ao que acontece na realidade.
Fecha o livro.
Abre-o só em casa, tendo pensado no caminho nas experiências que poderia fazer com um livro tão inusitado. Só de voltar a ler, leva um susto. Sempre que continua de onde parou, o que está escrito é exatamente o que está acontecendo no momento. Pensa por alguns instantes em como tapear o livro mágico. Folheia: está todo preenchido. Pensar nisso lhe dá calafrios, pois isso quer dizer que tudo o que irá lhe acontecer está já fixo, rígido, talhado em signos pretos que se estendem por – pensa ele – não muitas páginas. Será que, acabando o livro, morre o leitor?
Abre numa página aleatória e passa os olhos na seguinte sentença: “pulou da página dois para esta, e leu esta frase”. Fica com muito medo e volta para onde parara. Pensa em ler o que está escrito nas últimas linhas do livro pra saber seu fim, mas se não há nada depois do que leria, e se o que ele ler, invariável e inevitavelmente, acontecerá... bem, ele prefere não ler.
Estando literalmente com a vida nas mãos, ele continua lendo, quando tem uma idéia. Diz em voz alta que vai dar um salto, mas não cumpre. Pega uma caneta na escrivaninha e, com ela, risca as palavras 'mas' e 'não'; se pensa, satisfeito, vitorioso, ao concluir que o livro, afinal, predisse errado. Depois continua a leitura e vê que foi inútil; a descrição do ato segue. Se sente um pouco estúpido por ter tentado algo tão bobo.
Percebe que o primeiro capítulo do livro está quase no fim, e conjetura o que acontecerá quando um capítulo acabar. Sente um pouco de receio, mas continua lendo. Lendo tudo o que lhe acontece, o que faz, o que pensa, todas essas emoções, lendo tudo o que já sabe, agora já não tão surpreso por descrever o livro sua vida, mas sim com desolação. É como se sua vida escorresse pelos dedos; a cada letra que apreende fica mais perto do fim do livro e da sua vida. Nunca antes havia reparado em quão fugidio é o tempo, a existência, o ser.
Faltando poucas linhas para o fim do capítulo, decide. Fecha o livro e corre para o jardim. Enterra-o, vendo sumir sob a terra o título Se Você, Por Entre As Linhas. As três últimas frases do primeiro capítulo ele nunca chegará a ler.

14 de setembro de 2009

Conto da Ilha Desconhecida II

Último domingo passado visitei, como programa familiar – pois algo semelhante não acontecia há mais tempo do que o suficiente pra que minha mãe se deprimisse –, a ilha de Paquetá, no espaço marítimo do Rio. Entre o objetivo de passar um dia com minha mãe e irmãos, pretendia fazer algum exercício físico (pois me disseram que andava abatido pela falta disto) e abraçar um baobá que há na ilha. Pois diz a lenda que você abraça um baobá e pode esquecer qualquer coisa que quiser. Diz outra que o que você faz ao baobá volta pra você sete vezes (ou durante sete anos, não lembro bem), mas estive mais interessado na primeira.
Foi um passeio de fato muito agradável, conheci pessoas ótimas, fiz meu exercício físico, e em dado momento, quando me vi sozinho por quaisquer motivos, fui a um mirante que há na ilha. Subi por escadas serpenteantes, num labirinto de pedras que não parecia fazer sentido algum, dado que todos os caminhos acabavam confluindo, e lá na frente, lá em cima, uma construção que parecia ter algum objetivo, mas que não soube adivinhar qual. Era uma construção octogonal, como um coreto, com primeiro e segundo andares, o de cima funcionando como uma varanda, de onde pude ver o mar até um ponto muito longínqüo.
Ilhas me atraem por algum motivo. Lá do mirante lembrei minhas fantasias infantis, de como eu, em vez de astronauta ou jogador de futebol, sempre quis ser um pirata. Navegar pelo oceano, ancorar próximo a ilhas desertas, descobrir tesouros, enfrentar os perigos e a solidão enorme do mar. Lembrei de como adorava histórias como Viagens de Gulliver, Robinson Crusoé, A Ilha do Tesouro (do Stevenson), Peter Pan, e como hoje, quando leio livros como A Invenção de Morel, me encanto. Ilhas me atraem muito. Lembrei então do conto do Saramago e (na minha atual tendência para mudar de humor bruscamente), fiquei consternado, pois lembrei, triste, que já não há mais ilhas desconhecidas. Não há mais tesouros enterrados. Tudo já foi visto, documentado e estudado. Me provaram de algum jeito que Lilipute e a ilha dos meninos perdidos não existe no planeta Terra, e por mais vontade ou equipamentos de navegação que eu possua, nunca vou alcançá-las ou alcançar qualquer lugar em que nunca tenha pisado alguém.
No meio de tudo isto pude ver, lá embaixo, na água, um barco. Não é a coisa mais incomum, pensarão ao ler isto, um barco a boiar. A água da Baía não é limpa, mas é passível de navegação, e não raro é ver barcos por ali. Mas com calma eu explicarei que não era uma lancha ou um barco a motor. Era um barco veleiro, aparentemente muito antigo, cujo nome não pude ver na proa, mas que era pintado em letras bonitas, vermelhas e maiúsculas. As velas estavam afrouxadas e o casco saboreava as ondulações como se aproveitasse, como se sorrisse. Não sei por quais diabos resolvi ver mais de perto o barco. Talvez para saber seu nome. Desci as escadas serpenteantes, que agora me pareciam mais lógicas, e cheguei até o lugar de onde veria melhor o barco. Para minha surpresa, havia um pequeno pier de madeira que se estendia uns dez metros sobre o espelho d'água, e um pequeno bote de madeira amarrado numa das pontas. Alguém viera daquele veleiro neste bote e estava na ilha agora.
Virei as costas, para voltar ao lugar onde estavam as pessoas com as quais vim para a ilha, mas tudo o que eu fora outrora, num ímpeto, voltou a mim. O pirata, o náufrago, o aventureiro, o explorador, desbravador, aquele que descobriria uma ilha nunca antes pisada por homem algum; eu cresci e deixei pra trás a melhor criança que já existiu. Eu sou um menino perdido que deixou a Terra do Nunca! No momento em que tudo isso me assolou, virei de volta para o bote, mãos na cintura e pernas entreabertas, e pensei que não podia, mesmo, deixar nada daquilo se esmaecer e se perder no tempo. Saltei pra dentro do bote, desamarrei a corda que o prendia ao pier, remei até o veleiro e subi as escadas, o coração batendo como um tamborim.
O barco me recebeu como se eu fosse seu capitão, e eu por um momento pensei que, se eu soubesse navegar e se tivesse comigo, ali, uma tripulação, poderia muito bem içar as velas e sair pelo oceano em busca de uma ilha. Há de existir uma ilha deserta, uma ilha inexplorada, algo que tenha passado despercebido aos radares, satélites e telescópios. Há de existir um lugar mágico que engane os que vejam de fora, ou que seja invisível aos pragmáticos, aos céticos, aos de pouca imaginação. Não! Ela existe! A minha ilha desconhecida existe, e cartógrafo nenhum vai me dissuadir!
Estava a boreste, então corri ao convés, e quando olhei, minha tripulação estava pronta! Lemuel Gulliver no mastro, Robinson Crusoé na escota e no burro, Jim Dawkins com os cabos, o fugitivo da ilha de Morel na bolina e ele, o próprio Peter Pan, como o meu navegador. Eu, como timoneiro, manejei o leme, e como capitão, ordenei a Gulliver que esticasse a vela. A esteira, no ângulo com a testa, logo rangeu um pouco. Somente com o rosto, percebi o barlavento. A retranca não tinha um grande ângulo de abertura; cacei a escota até a vela esticar. Orçei sutilmente e a vela começou a panejar. Ordenei à tripulação que se dispusesse de modo que o barco bandasse um tanto para sotavento. Mandei que Crusoé e Dawkins prestassem atenção extra ao burro e aos cabos da testa e da esteira, pois afastávamo-nos de Paquetá e o vento ficava mais forte. Girei à arriba até o vento estar de través. Eu não fazia ideia de como sabia isso tudo ou quando havia aprendido a velejar, mas eu sabia! Era capitão de um navio! Eu navegava rumo a encontrar minha própria ilha desconhecida!
Seria uma ilha não muito grande, verde; um verde mais verde que qualquer outro visto antes – pois seria um verde que só existiria nesta ilha. Haveria cachoeiras e cavernas escondidas atrás delas, e animais nunca antes estudados. Algum náufrago, quem sabe, já haveria de ter morado ali algum dia, e talvez houvesse escrito algo e escondido pela ilha. Quem sabe houvesse algum tipo de magia, feitiçaria, ser sobrenatural, algo digno de uma lenda, de uma ilha que por algum motivo ninguém descobriu antes de mim. Minha ilha seria fantástica, cheia de mistério, cheia de beleza.
Minha ilha seria cada coisa e pessoa que eu tento encontrar e descobrir no mar em que navego, mas que me dizem já ter sido conhecida. Minha ilha desconhecida seria como cada segundo que vem, e que me é completamente imprevisível, inusitado e de certa forma, incrível. Minha ilha seria como eu, que não conheço e que nunca saberei se já conheci. E quando eu lá chegasse, da praia, lembraria de olhar para o barco (ainda não descobri seu nome!), e ai sim entenderia: como o barco do conto de Saramago, o meu também navega em busca de si; na madeira gasta da proa, em letras vermelhas, lerá-se, agora sem dúvidas, a solitária palavra pela qual me chamam: o barco tem o mesmo nome que eu.

8 de setembro de 2009

desolação

Ele colecionava ampulhetas, mas hoje, em sua ânsia de destruir o tempo, reduziu sua coleção a pedaços de vidro e areia espalhada.

15 de agosto de 2009

Pista de esqui (circuito para principiantes)

Nunca antes havia lhe acontecido de sentar-se ao computador e não surgir nada sobre o que escrever. Era-lhe na verdade muito simples esta atividade: bastava juntar algumas impressões adquiridas durante o dia, imagens reunidas pelos (já não tão) vigilantes sentidos, agrupá-las numa ordem interessante, elaborar um roteiro que tornasse a coisa inteligível e modificar um pouco os fatos, exagerando levemente em alguns pontos para que ficasse interessante ao leitor, mesmo que desatento ou desinteressado. Não estava nem ai para os que lhe diziam que literatura não tem uma (ou mais de uma) fórmula; a sua tinha, e ganhara milhões assim. Se não escrevia bem ou se o que escrevia não merecia ser considerado literatura não era seu problema.
O fato é que só ganharia dinheiro se escrevesse, e no momento não conseguia arrancar nem uma linha do espaço branco à frente do rosto. Deu um gole no café. Nada. Ouvira já outros reclamando sobre esse momento, sobre sentar-se para escrever e não ver as palavras brotando, não sentir que as mãos começam a escrever sozinhas, não ser levado pela escrita a ponto de nem lembrar depois de ter escrito aquilo. Pra ele sempre fora assim e aparentemente sempre haveria de ser. Escrever era como esquiar: um pequeno impulso e a brancura lisa da neve (ou do papel) encarregava-se de levá-lo até o pé dá montanha que era a página, sem precisar grandes esforços, a não ser para girar uma curva aqui ou ali.
Levantou-se, foi ao bar, despejou um gole de conhaque no café. Bebeu. Bebeu mais. Nada. O branco da tela do computador era o branco mais pálido que já vira. Começava já a desesperar-se, a barriga a sentir cócegas de ansiedade. Sentou-se com a cabeça entre as mãos, já pensando em como seria sua vida sem escrever. Poderia viver com o que já tinha, sim, mas sempre sentira-se tão bem escrevendo...
Conformou-se. Nunca mais escreveria, não era tão mal assim. Na verdade, era mesmo hora de se aposentar! Sorriu satisfeito e levantou-se, deixando o computador para trás.
Súbito, parou, girou nos calcanhares e sentou-se de novo. Usando todas as suas técnicas, toda a sua fórmula, toda a sua imposturice, lançou os dedos às teclas do teclado e de uma vez só escreveu um texto curto, sobre a sensação de não saber o que escrever.

11 de agosto de 2009

Silêncio(s).

Lá estava eu, sonolento, acompanhando ao rito massante, desgastante, a que a igreja católica faz seus fiéis passarem para qualquer que seja o fim. Meu tio foi o último dos cinco irmãos a se casar, mas logo que o fez já tratou de perpetuar seus genes. Agora, um ano depois, fomos a família toda acompanhar o batizado do guri, que é de fato uma graça.
Meu avô gostaria de estar lá, acho, mas ele morreu há alguns anos. Rui, o Cão. Era um homem no mínimo sacana, bronco, bufava, fazia piada com tudo e todos, mas ao mesmo tempo era completamente sensível. Meu tio saiu à imagem. Eu e meu irmão sofremos nas mãos dele, e até hoje sofremos um pouco. Que o filho dele nos aguarde!
O bonito nessa parte da história é que o garoto estava sendo batizado, e até o nascimento ninguém sabia o nome; meu tio disse que "veria de quê o bebê teria cara". Surpresa emocionada de todos foi chegar na porta do quarto e ler o nome do bebê inscrito: Rui.

Bem, eu estava lá na igreja, sonolento, pensando essas coisas todas, mas mal sabia onde estaria no outro dia. Lugar que não visitei por muito tempo, por não agradar aos sentidos nem à razão. A necrópole de túmulos e placas e jazigos que é o cemitério de Petrópolis chega a ser maior que algum bairro, aposto. Meio sem jeito (pois não sei qual a postura adequada a estes lugares) encontrei o caminho por entre todo aquele mármore e cheguei ao sepulcro que procurava.
Meu pai sempre contou que meu avô, que eu não conheci, era a pessoa mais boazinha do mundo. Ele era carpinteiro e fazia brinquedos pros meus tios. Nunca levantou as mãos pra bater num filho, exceto por uma vez, mas passou a noite numa cadeira chorando. Histórias de papai. O fato é que, na verdade, meu pai sim era a pessoa mais boazinha que eu conheci. Tinha uma barba e um físico ameaçadores, uma mão maior ainda, mas um nariz de batata, olhos e sorriso bobos, de quem não faria mal a ninguém. E eu, fora o porte físico (que ficou de herança pro meu irmão, acho), sai à imagem.

O cemitério, deserto, proporcionava um silêncio que não lembro ter ouvido antes, embora agora julgue sim tê-lo experimentado em dado momento. Sentado no jazigo do meu pai e avô, os sons todos desapareceram do mundo, e os movimentos também (até porque tumbas de pedra não se movem sozinhas). Tudo estagnou e o tempo parou de andar - ou correr. Só há tempo quando relativo à vida, pensei. Sensação semelhante à de dois dias antes, no momento em que o padre jogou a água na cabeça do menino. A igreja silenciou, as respirações cessaram, o mundo inteiro parou por um segundo, até o barulho da água soar. Aquele silêncio foi exatamente o mesmo do silêncio do cemitério, quando o tempo parou. Nos dois momentos, no calor da vida nova do pequeno Rui e na frieza da velha morte do meu grande pai, todo o mais deixou de soar, para ouví-los, talvez.

Acho que essa é uma das razões para minha vontade absurda de ter um(a) filho(a): enganar o Tempo. Reproduzir num futuro o que já foi passado, ainda que eu nem saiba que foi, e anular completamente a noção de presente. Um novo Rui bufando e mexendo com os netos, um vovô Zezinho revivido pelo neto que não conheceu, meu pai em mim, eu em meu pai, e os dois em meu filho - que também não vai conhecer o avô, mas que vai ouvir histórias incríveis sobre ele. E quem sabe, dessa vez, modificando um pouquinho o ciclo, a história possa ser diferente, e meu filho possa dizer, em tempo, o quanto ama seu pai.

Do passado ou do futuro pouco sei e pouco saberemos, mas nessa minha eterna (faz sentido?) batalha com o Tempo, descobri ao menos que a vida é só um ir ou vir, tanto faz o sentido. O silêncio do nascer é o mesmo do morrer, e nestes dois momentos o tempo sucumbe. O meio não interessa agora, tenho a vida pra tentar entendê-lo. Mas o silêncio dos seus extremos me fez perceber isto, que considero agora indispensável:

Nascer e morrer são, essencialmente, a mesma coisa.




Feliz dia dos pais; eu te amo.

29 de julho de 2009

texto da gaveta (sem título)

Trabalhava mecânica e ininterruptamente, como sempre. Os dedos digitando compunham uma melodia que se espalhava em trajetória angular, a se juntar a outras, formando uma enorme sinfonia. Os barulhos das teclas eram as percussões enquanto os suspiros e resmungos, os sopros, e uma marchinha murmurada nasalmente por alguém distraido fazia o papel das cordas.
Imaginou sua fuga. Levantaria bruscamente, interrompendo a sinfonia - pois uma orquestra não pode continuar a tocar se um dos percussionistas levanta-se abruptamente de sua cadeira e pára de tocar -, correria por entre as mesas e divisórias, sem pensar, derrubando o que estivesse no caminho. Desceria correndo pelas escadas, ligaria o carro, avançaria o sinal vermelho, deixaria o carro no meio da rua, subiria as escadas, agarraria seu par e os filhos e entraria depressa no carro, debaixo de palavrões e buzinas agressivas.
Tocaria pelas ruas, veredas, estradas e campos, sem parar, até chegar a algum lugar deserto, longe de qualquer resquício de civilização. Destruiria o carro, talvez o queimasse, e desfaria-se de suas roupas e relógios, e notas de dinheiro. Beberiam água de rio, fariam uma casa de madeira e palha, lavrariam a terra e caçariam para se alimentar. Os filhos não aprenderiam mais matemática ou inglês, mas sim lições de sobrevivência. Nada mais de vacinas, nada mais de aspirinas. Que seriam úteis, pois novos bebês nasceriam, visto que não haveriam anticoncepcionais.
As crianças tornariam-se adolescentes; os bebês, crianças. Haveriam novos bebês. Como é de se esperar no ciclo de vida natural dos seres humanos, a sexualidade haveria de aflorar, e seria entre os irmãos ou com os pais. Com o tempo, a linguagem se restringiria a poucas palavras, e não haveria mais escrita. Em épocas difíceis o egoismo e a inveja gerariam conflitos, e algum espertinho aprenderia a lascar uma pedra. A matança, o incesto e a barbárie iriam predominar, e tudo terminaria numa grande fogueira acesa em louvor de uma nova divindade imperativa e cruel.
Piscou. A tabela, exposta no monitor e refletida nos óculos, os números, números e mais números justamente onde estavam antes. A mão tinha parado de digitar por um instante, desequilibrando a sinfonia. Relaxou os músculos das pernas e ajeitou os óculos, como se se desculpasse para com a orquestra, e a mão, trêmula, encontrou seu tempo de volta na música.

texto da gaveta (Pêndulo)

De ansioso a entediado,
é assim a vida.
Eu, do alto do telhado,
o pensamento alto
de loucura travestida,
não cabendo mais em mim,
no auge do meu tédio,
do alto do prédio,
um salto.
Alívio enfim.

22 de julho de 2009

texto da gaveta (Morte da filosofia)

Definho.
De fino jantar à mesa posto,
recuso-o. Banqueteio Cagliostro.
Desgosto..
Desse gosto que não esqueço,
desse gosto ou desse o avesso;
Apareço?
A preço baixíssimo ponho
o apreço por qualquer sonho.
Expõe-o!
Espanta que esse um espinho
fira-me tanto, sozinho!
Definho...

15 de julho de 2009

texto da gaveta (sem título)

Formara-se recentemente, com sofreguidão. Sonhava com o magistério, mas não tinha paciência para tanta teoria. Passara, enfim, e agora, como as coisas teimam em ser, era hora de se arrumar financeiramente. Arrumou uma vaga de professor numa escolinha municipal, ganhando uma merreca, mas sabendo que é um passo de cada vez. Foi mandado para alguma instituição burocrática do governo para regularizar algo, ou fazer pedido de qualquer coisa.
"Nome?", o atendente brusco, sem tirar os olhos do formulário que preenchia. "Francisco de Oliveira", a resposta veio numa tentativa de simpatia, como um tratado de paz. A resposta à proposta de tratado foi um tiro de canhão: "Ocupação?"; "Muita!". O atendente murmurou um riso, daquele tipo que deixa o piadista sem graça. Não levantou os olhos do papel. "Sério, senhor, tem gente esperando. O que o senhor faz?". A pergunta foi bem abrangente, e, olhando pra trás, não havia ninguém esperando. "Eu dou aulas, escrevo, faço alguns trabalhos de digitação e sou músico também."
O atendente levantou os olhos e suspirou. "Tenho que botar a atividade principal. O senhor é professor?"; "Sim.", resignou-se o cansado apaziguador. "De quê o senhor dá aula?"; "Filosofia."; "Eu imaginei. Tenho um primo que faz filosofia. Ele também complica tudo, e também usa barba e cabelo comprido.".
Francisco de Oliveira terminou de fazer o que tinha ido fazer, sério, e saiu pela porta resmungando. "'Eu imaginei'... Olha só que absurdo. Funcionário público incompetente." Saiu pela rua, indignado, como qualquer filósofo se sentiria ao se descobrir tão óbvio, e foi cortar o cabelo.

7 de julho de 2009

Akasha

Resignado, acatei e resolvi arrumá-lo, mesmo que superficialmente. Meu quarto não funciona, no melhor eufemismo. Não durmo na cama: ela está coberta por roupas dobradas. Livros ocupam a superfície superior de todos os poucos móveis espalhados pelo espaço pequeno. Há uns chapéus engraçados e poucas coisas sem função alguma pelo chão. Comecei olhando dentro das gavetas de uma cômoda que nem deveria estar ali, mas que “sobrou” e veio parar no meu quarto mesmo. A gaveta superior comporta as coisas mais recentes, as últimas coisas que precisei guardar em algum lugar. Sendo assim, não apresenta novidade. A segunda de cima pra baixo contém as folhas infinitas de blocos, fichários, cadernos que outrora usava pra escrever na escola e na faculdade. Hoje não tenho paciência para isso, então aprendi a ouvir, tornando o papel, nestes momentos, útil somente para distração. A gaveta mais próxima do chão é minha favorita. Nela guardo recordações. Os bilhetes de cinema, os canhotos de passagem das viagens, umas fotos, tampinhas que me lembram uma garota, um bilhete escrito por um amigo, minhas cartas. Há nesta gaveta coisas que não faço idéia de que eram na época em que guardei. Uma chave, uma bolinha de gude, uma folha de alguma planta que é, olhada por mim, um magnífico fractal, uma gaivota de papel.
O degradê temporal das minhas gavetas é perfeito, começando no agora (ou recente), passando pelos últimos anos de estudo e culminando nas lembranças mais profundas. Mas acontece que a cômoda na verdade tem quatro gavetas. Uma terceira, entre a dos fichários e a das lembranças, se mostra diante de mim como se nunca a tivesse visto. Não chama mesmo a atenção: se tivesse que abrir alguma delas sem saber o que há dentro, com certeza não seria esta. Ao abrir, levo um choque. Entre outras coisas, que guardei e não lembrava, uns discos, um jornal, meus olhos param numa pasta transparente, com folhas brancas e de caderno. Abro e leio. Ali estão textos antigos, meus, mas que nem lembrava de ter escrito! Bons ou ruins, não importa. A gaveta funciona como uma máquina do tempo – ou, se a analogia fica melhor, uma cápsula do tempo –, pois guardou durante tanto tempo meu passado, pra me entregar agora. Tenho, por um momento, uma impressão sensível do passado, antes de minha razão tomar conta da cena e das sensações. Por um singular momento, tenho uma afecção pura, limpa de razão, do que é o tempo, em sua essência!
A terceira gaveta é a caixa de Pandora, é a Madeleine, é Akasha; me transforma num John Doe, que sabe tudo, menos o que se é. Abrir a gaveta me esvaziou, me livrou de tudo o que eu era (e o que eu tinha!), me deixou vazio para que o Tempo pudesse se apropriar do meu ser, invadir minha essência, que agora já não era definível, contornável. Ao ler os textos da pasta, pude perceber que não interessa muito mesmo o que estava escrito ali, mas sim a impressão que me causou. O conhecimento universal estava aprisionado naquela gaveta, e ao abri-la, assim como ao abrir aquela de Prometeu, escaparam dali todos os males, ou seja: tudo. E eu fiquei tão embasbacado com a sensação que nem fechei a tempo de guardar a esperança.
Recentemente descobri o que é pintar, segundo Proust: não é pintar o que se vê, pois não se vê nada, efetivamente. Também não é pintar o que não se vê, pois só pode pintar o que se vê. Pintar é, para Proust, pintar que não se vê. Um pintar que escape da razão, pintar a essência, aquilo que “vemos” antes de a razão categorizar e nomear, definindo. Do conhecimento essencial que me abarrotou ao abrir a gaveta não resta quase nada em mim, mas uma coisa permaneceu (e não é a esperança, ufa!): é a certeza de que a minha literatura deve seguir um caminho. Deve ser uma literatura de força, não de forma. Não deve retratar coisa alguma, mas deve dar ao seu leitor a mesma sensação que tive ao abrir a terceira gaveta. Levá-lo, arrastá-lo para outro lugar, deixá-lo tonto, distorcer as concepções, as definições, os contornos, dando sensações puras de tempo, espaço, ser, de mundo. Devo torcer a literatura a ponto de escapar dela, mesmo estando dentro.
Devo, parafraseando, escrever que não se lê.

18 de maio de 2009

Vício

Anda até a janela, sem camisa, sentindo frio. Atrás de si, a cama, mas ninguém sobre ela. Nenhuma mulher de nenhum tipo, e a respeito deles, se fôssemos listá-los aqui todos não haveria espaço. Ele está sozinho no quarto, mergulhado na mais lúgubre penumbra, uma penumbra densa, que sugere a presença de uma tensão no ambiente; uma tensão sexual. Há muito tempo este quarto não comportava apenas uma pessoa. Durante muito tempo, ele (o homem à janela) não esteve sozinho – em todas as noites uma mulher diferente dividia com ele o espaço. Seu analista disse que era uma compulsão. Disse algum nome que significava que o paciente (que já não tinha mais muita paciência pra isso, e por isso nunca mais voltou) era viciado em sexo. E bem, de fato, não era admissível passar uma noite sem uma par.
As mãos a princípio atrapalhadas, sem saber aonde parar, as pernas se tocando, primeiro tímidas entre si e depois certas, explorando-se com vontade. A pele, em sua textura, cor, cheiro, gosto. O conhecer cada linha, cada curva da vastidão pessoal que se escondeu por tanto tempo, e que vai se mostrando pouco a pouco às mãos, agora já mais decisivas e aos olhos, quando estes não se fecham. A respiração dos dois corpos progressivamente se tornando uníssona, ritmada. Os dois corpos enlaçados, como se se atraíssem, como se nada mais pudesse separá-los; o mistério revelado, a exploração, desvelamento do desconhecido, o mapear de cada centímetro de pele do corpo do outro com as mãos, braços, pernas, lábios, dentes; a tensão, a última tensão, do gozo final, firme, tensa... E o enfim relaxar.
E já que vai relaxar, acende um cigarro, por mais clichê que soe, por mais ridículo pareça; ele sempre acende um cigarro ao terminar e o fuma inteiro antes de dizer ou fazer qualquer outra coisa. O brilho da chama em contato com a ponta do cigarro, o calor, todo aquele calor que há pouco estava espalhado nos corpos, agora se concentra na ponta do pequeno bastão. O primeiro trago, observando bem como aquela brasa se encontra submissa ao seu fôlego – assim como a do ato recém-terminado –, invadindo o peito como se fizesse com que os alvéolos acordassem, como se só então percebesse que de fato há pulmões. Libera, então, a fumaça clara; os olhos semicerrados, a cabeça para trás, o corpo, o ar, a mente... E o enfim relaxar.
Está lá agora, sentindo um pouco de frio, a cama vazia atrás, sozinho. Mas não completamente. Vai até a janela, olha o mundo lá fora e pensa em quantas mulheres com as quais nunca esteve estão esperando por ele, em que tipo de mulher poderia estar na cama atrás de si, e em como depois nunca mais a veria. E conclui que tudo isso é estupidez. Leva a mão à boca. Não precisa de mulher alguma, nunca precisou. Acende o fósforo. Ele na verdade não faz questão alguma do sexo. Traga. É viciado em cigarros.

25 de abril de 2009

oч|ədsƎ


·eu∀ eə əч|nω esə ənb e!qes :ə٨ eə |e!כədsə oueəuƎ ·oч|ədsə ωn6|e ωə6eω! ens e!ə|ɟə!ou no e!p e '„əч|nω„ e٨esuəd opuenΌ iəs-nouox!ede :n!qoכsəp ənb ə|ənbe ωəωoH ·ωəωoч ωn ọs eə ənb əч|-e٨e|e ·əs-n!٨ opuenb noed ə noч|o ə|Ǝ ·eə o oч|ədsə o ənb əs-ə٨ 'sạ٨ee opueч|O ·oəכ e٨esə seω 'nox!əp e 'n!ed oeכֿeoכ nəS ·eo6e eə oч|ədsə :oч|ədsə eə eo6e nəs oeכֿeoכ ·n!ed 'e-nox!əp seW ···e٨esə oəכ ·opueч|o 'sạ٨ee ə٨ əs ənb o 'oч|ədsə o eə ə|ə :noч|o ə noed opuenb n əS ·e٨e|eɟ əч| ənb eə - ọs ωn 'ωəωoч - ωəωoч ə|ənbe ənb n!qoכsəp 'nouox!ede əs opuenΌ ·e٨esuəd əч|nω e e!p no ə!oN ·e!ə|ɟə ens ωə6eω! ωn6|e oч|ədsə :oueəuə |e!כədsə eƎ ·ə٨ e!qes ənb e əч| eə eu∀



(ωoכ·ods6o|q·opeч|ədsə-sode 6od 6o|q op oכֿəəpuə o en!sqns 'opeч|ədsə o o ə| əs!nb əS)

31 de março de 2009

Ânuo

Os corredores da universidade (não os atletas, os passadouros) ficavam apinhados de estudantes no início do período letivo, como era de se esperar. A falação, a correria (fazendo jus ao nome do cômodo em que se encontravam); centenas de adultos que acabavam de deixar pra trás seus ser-crianças, e que agiam como que num último impulso pueril: era o último primeiro dia de aula de suas vidas. Sendo assim, todos conheciam seus novos colegas, e com animação experimentavam aquilo que definitivamente não seria sua rotina nos próximos anos. Entre eles um homem mais velho, do alto de seus quarenta anos e quase dois metros de altura, por entre o cerrado da barba e de dentro de uma camiseta branca lisa e de um jeans, cumprimentava os calouros, recebendo-os com afeto. Dois professores caminhavam em meio aos novos e antigos alunos, em direção a uma sala onde uma reunião especial de início de período ocorreria.

- E lá está ele de novo, lá fora - começou um dos professores (um velho mal encarado e de cabelo engraçado) a reunião -, cumprimentando os calouros. Por que ele faz isso?
- Mas que mal há nisso, professor? - retrucou uma professora com cara e jeito de boazinha - Ele não nos prejudica em nada!
- Me é um pouco irritante.
- Ora, nunca proibimos ninguém de entrar nesta universidade; ele não está invadindo. Só porque ele não é aluno não quer dizer que não possa permanecer aqui. Eu só gostaria de saber o porquê de, a cada período, repetir a mesma encenação. Todos os que já estudam aqui há pelo menos um ano já sabem que ele não é filiado à universidade. O que será que ele quer?
- Sinto um pouco de pena - disse alguém que não havia falado ainda.
- Já pensou que ele pode ser maluco? - Um outro professor.
- Oras, já pensaram, senhores, que ele pode simplesmente ter uma absurda vontade de estudar na universidade? Há pessoas que de fato ficam malucas tentando - novamente a mulher boazinha do inicio da conversa -, e segundo o projeto político pedagógico....

A assembléia continuou por todo o dia, até que, finalmente, como a tempestade depois da calmaria (pois sempre citam a calmaria, mas nunca a comparação contempla a tempestade, que é a parte mais bonita da coisa), a porta da sala se abriu.

O homem dos corredores se despedia dos novos amigos calouros (que só o veriam novamente depois de um ano, quando a próxima leva de novatos chegasse - momento em que lembrariam dele e achariam graça) quando duas professoras o abordaram. Explicaram a situação, e informaram tudo o que havia se discutido, para, enfim, fazer o convite. Disseram-lhe, sorridentes, que ele ganharia uma bolsa de estudos e que poderia estudar ali nos próximos anos! A reação, entretanto, não foi a que as duas esperavam. O homem ficou imóvel, sério. Ele olhou bem as duas, o cenho franzido, como se não entendesse bem o que lhe diziam, e disse, enfim, resoluto:

- Mas por que diabos eu ia querer estudar?

20 de março de 2009

Sobre a amizade

Tive, quarta-feira passada, oportunidade de passar a noite conversando com algumas pessoas que considero muito agradáveis. Foi uma noite muito divertida, e no meio de uma das deliciosas (sempre o são) conversas, pude perceber - tardio - uma coisa sobre mim.
Ao leitor que estivesse ausente, explico: conversávamos em certo ponto sobre amizade, e uma das pessoas que lá estava discutia como tinha medo/raiva de pessoas que "roubavam" seus amigos, transformando-os em algo diferente enquanto estivessem presentes. Me posicionei dizendo que não entendia esse tipo de relação de posse que as pessoas têm em qualquer relacionamento, e neste ponto, a partir da fala dela e da minha, pude compreender muitas coisas.
Revisitando todas as minhas amizades e observando as relações de algumas das pessoas que estavam lá quarta, amigos há bastante mais tempo do que me conhecem, consegui enxergar que não possuir esse tipo de relação com as pessoas é justamente o fato que rege minha rede de amigos e meu próprio conceito de amizade. O jeito como se se estabelecem os grupos de amigos (este observado quarta-feira, por exemplo), as ligações, as ações, os contratos implícitos, eles não podem de modo algum se aplicar sem que haja essa relação de posse. Não tendo (e não demonstrando) eu esse apego, esse prender-se ao outro, as pessoas que me rodeiam não conseguem alcançar o nível mínimo de intimidade para uma amizade de fato, nem consideram-se (enganam-se todos) queridos o bastante.
Pensando bem, minha meia dúzia de amigos divide-se em dois (não tão) distintos grupos: o primeiro, daqueles que tiveram algum tipo de decepção ou desapontamento e por isso (ou não) não confiam nem se aproximam mais de mim, mas que, por termos uma relação muito forte, é impossível separarmo-nos; e o segundo, composto por pessoas com as quais não converso ou que não vejo quase nunca, mas que quando encontro ou converso é como se tivéssemos nos visto no dia anterior. Sendo assim, a condição básica das minhas amizades é, triste conclusão, a distância.
Não quero, com tudo isso, desconsiderar as pessoas que estão à minha volta e que gostam de mim tanto (ou um pouco menos) quanto gosto delas. Mas esse pequeno parágrafo resulta desimportante, acredito, pois a ninguém são soaria interessante o título de amigo sob o preço de afastar-se do objeto da amizade.
Resumindo essa agumentação pobre e patética, ela própria se faz improfícua; não se pode mesmo, discorde se quiser, esperar de alguém que não tenha amigos que escreva um bom texto sobre amizade.

19 de março de 2009

3 de março de 2009

Déjà vu

Começa assim: ele tem a ligeira impressão, que não é nada ligeira mas sim arrastada, como se demorasse mais do que o tempo que dura – definição que agradaria Bergson –, sensação no mínimo assustadora. Ele, entretanto, acha graça a princípio, afinal tem completa certeza de que aquele momento, em todos os seus detalhes, desde seus pensamentos até suas sensações e toda a construção do mundo como lhe é apresentada, já aconteceu antes. O momento seguinte, surpreendentemente, se faz exatamente do mesmo modo: como que previsto. A verdade, pensa ele, é que não previu nada, mas a sensação de já ter passado por aquilo se repete para cada evento – inclusive para esse exato pensamento. Ele sabe o que está acontecendo. Logo essa sensação vai passar (e inclusive essa certeza parece ele já ter experimentado), e a vida continuará como era antes do estranho fenômeno neurológico – como preferem os homens da ciência rotular.
Ele, enquanto pode, aproveita, acha graça, uma graça que tem certeza já ter sentido, uma perplexidade repetida, uma seqüência de eventos perturbadoramente iguais a outros que ele sabe que nunca experimentou, embora sinta que já. Esse saber certamente nunca ter experimentado aquelas coisas, com o tempo (tempo?), vai desvanecendo, e essa teoria tornando-se fraca, pois a sensação não passa. Será que ele de fato já passou por tudo isso? Viagem no tempo? Pré-cognição? Não parece caso de super-poderes.
Começa a ficar desesperado. Um déjà vu não dura mais que alguns segundos, e faz cinco minutos que o mundo, em todos as suas manifestações, se repete diante de seus sentidos. Ele tenta fazer algo inusitado, como se jogar no chão ou gritar uma palavra inventada (coisas que ele não teria feito em um possível passado muito parecido com o presente), mas ele sente que também aquilo já experimentou.
Ele entende que, se esta sensação se estender ininterrupta, até o fim de seus dias, não fará mais sentido acreditar em (ou nem sequer dizer o vocábulo) tempo. Presente, passado e futuro já não são bastantes, ou talvez sejam palavras demais agora para definir ou tentar abocar o que é tempo. Ele (o personagem, não o tempo), nesse momento, passa a existir em um outro tipo de realidade, passa a ser um sujeito fora do mundo, já que este é ontologicamente relacionado (leia-se dependente) ao tempo. Na verdade, se tudo o que ele pensa, planeja ou faz se lhe parece (e o que lhe parece é o que define sua realidade) já anteriormente feito, e esse momento “anterior” é subordinante do agora, ele não é um indivíduo ativo. Só faz aquilo que faria pois já fez. Ele não é nada, senão expectador de uma série de eventos que já presenciou antes (mas que nunca aconteceu de fato).
Ele decide, pois, que irá acabar com essa agonia, e sobe as escadas do prédio. Vai até a cobertura e, sem emoções (pois sem o inusitado, sem a sensação de descoberta, de desvelamento do desconhecido, as emoções são diferentes: mais fracas). Salta. Os poucos segundos que demora pra chegar até o chão decorrem sem grandes emoções, pois tudo aquilo não tem nada de novo. Mas a beleza da queda vertical, retilínea, do corpo está no fato de que está tudo chegando ao inicio. O momento do encontro com o chão, como o esperado, é algo que ele sente já ter experimentado. Algo que parece sóbrio, parco, mas o seguinte!
Ele finalmente sente algo que sabe nunca ter sentido, apesar de não estar de volta no mundo nem inserido de volta no tempo. Ele finalmente é; não-sendo.

Déjà vu

Começa assim: ele tem a ligeira impressão, que não é nada ligeira mas sim arrastada, como se demorasse mais do que o tempo que dura – definição que agradaria Bergson –, sensação no mínimo assustadora. Ele, entretanto, acha graça a princípio, afinal tem completa certeza de que aquele momento, em todos os seus detalhes, desde seus pensamentos até suas sensações e toda a construção do mundo como lhe é apresentada, já aconteceu antes. O momento seguinte, surpreendentemente, se faz exatamente do mesmo modo: como que previsto. A verdade, pensa ele, é que não previu nada, mas a sensação de já ter passado por aquilo se repete para cada evento – inclusive para esse exato pensamento. Ele sabe o que está acontecendo. Logo essa sensação vai passar (e inclusive essa certeza parece ele já ter experimentado), e a vida continuará como era antes do estranho fenômeno neurológico – como preferem os homens da ciência rotular.
Ele, enquanto pode, aproveita, acha graça, uma graça que tem certeza já ter sentido, uma perplexidade repetida, uma seqüência de eventos perturbadoramente iguais a outros que ele sabe que nunca experimentou, embora sinta que já. Esse saber certamente nunca ter experimentado aquelas coisas, com o tempo (tempo?), vai desvanecendo, e essa teoria tornando-se fraca, pois a sensação não passa. Será que ele de fato já passou por tudo isso? Viagem no tempo? Pré-cognição? Não parece caso de super-poderes.
Começa a ficar desesperado. Um déjà vu não dura mais que alguns segundos, e faz cinco minutos que o mundo, em todos as suas manifestações, se repete diante de seus sentidos. Ele tenta fazer algo inusitado, como se jogar no chão ou gritar uma palavra inventada (coisas que ele não teria feito em um possível passado muito parecido com o presente), mas ele sente que também aquilo já experimentou.
Ele entende que, se esta sensação se estender ininterrupta, até o fim de seus dias, não fará mais sentido acreditar em (ou nem sequer dizer o vocábulo) tempo. Presente, passado e futuro já não são bastantes, ou talvez sejam palavras demais agora para definir ou tentar abocar o que é tempo. Ele (o personagem, não o tempo), nesse momento, passa a existir em um outro tipo de realidade, passa a ser um sujeito fora do mundo, já que este é ontologicamente relacionado (leia-se dependente) ao tempo. Na verdade, se tudo o que ele pensa, planeja ou faz se lhe parece (e o que lhe parece é o que define sua realidade) já anteriormente feito, e esse momento “anterior” é subordinante do agora, ele não é um indivíduo ativo. Só faz aquilo que faria pois já fez. Ele não é nada, senão expectador de uma série de eventos que já presenciou antes (mas que nunca aconteceu de fato).
Ele decide, pois, que irá acabar com essa agonia, e sobe as escadas do prédio. Vai até a cobertura e, sem emoções (pois sem o inusitado, sem a sensação de descoberta, de desvelamento do desconhecido, as emoções são diferentes: mais fracas). Salta. Os poucos segundos que demora pra chegar até o chão decorrem sem grandes emoções, pois tudo aquilo não tem nada de novo. Mas a beleza da queda vertical, retilínea, do corpo está no fato de que está tudo chegando ao inicio. O momento do encontro com o chão, como o esperado, é algo que ele sente já ter experimentado. Algo que parece sóbrio, parco, mas o seguinte!
O seguinte é um momento completamente diferente de qualquer outro que já tenha experimentado, e por isso, é claro, nada próximo do que esperava. Ele lembra novamente de Schopenhauer, que dizia que viver é ler as páginas de um livro, e sonhar seria folheá-las. Lembra de Dunne, dizendo que possuimos a eternidade em nós (a experimentamos nos sonhos), e que no momento de nossa morte teríamos pleno acesso a ela, podendo manejar todos os momentos de nossa vida e rearranjá-los como quiséssemos. Morrer é sonhar indefinidamente?
Ele finalmente entende! O que acontece é que já havia, de fato, experimentado todos aqueles instantes, mas no momento de poder manipulá-los, decidiu: aconteceriam novamente, do exato modo como haviam sido, na exata mesma ordem, e assim, no fim, quando chegasse novamente o momento dessa escolha (pois o fim também é um momento), este também se repetiria, forçando os anteriores (e ele próprio) a se repetirem, num ciclo infinito. E assim o será por toda a eternidade.
Sua existência agora é diferente de antes, mas é mesma, pois sendo e não-sendo ao mesmo tempo é repetição (pois já era assim), mas sendo uma repetição da diferença não pode ser o mesmo que era. Repetindo as palavras de outrem, diante da beleza dessa conclusão, qualquer incoerência resulta desimportante.

11 de dezembro de 2008

inter-

Curioso som, o de uma folha de papel amassada – não mais em forma de esfera, mas agora em forma aleatória –, chocando-se primeiro com outra folha amassada, depois com o chão de madeira do quarto. Não pergunte pelo absurdo dessa descrição: o som é sim audível, estando os objetos dessa cena mergulhados no quase mais completo silêncio. Há, além desse som, somente dois outros, o de uma respiração, quase surda – mas perceptível para um elegante narrador onisciente, é claro (este que na verdade não sabe de nada ainda, pois o espaço abaixo, ainda que prestes a ser preenchido, é agora ainda branco); e um outro, o mais alto de todos os barulhos presentes, uma seqüência aleatória de sons violentos de algo sendo chicoteado, mas sem o eco doloroso de um chicote. Um som mais seco, como se estivessem a surrar uma superfície com uma vara. Som que seria percebido por qualquer outro personagem capacitado a ouvir dentro deste ambiente no qual a cena está encerrada: um quarto, uma sala, um cômodo qualquer, de chão de madeira e paredes e teto ainda invisíveis para um leitor. Imaginará o leitor paredes brancas, azuis, vermelhas, de madeira, de tijolos, parede alguma (o infinito)? Não é importante. Concentremo-nos no chão. Está coberto de folhas amassadas, como aquelas sobre a qual a narrativa se focou em seu princípio. Algumas muito bem amassadas, em uma esfera quase perfeita, outras quase planas ainda, só com metade amassada por uma mão nervosa. Outras, nem um nem outro: parece que a mão que as amassou teve pena, e amassou pouco. Talvez, mas ainda assim jogou-as com as outras.
O barulho mais alto, sem mais, e apenas para aqueles leitores que não deduziram – ou melhor, não induziram –, é o som da máquina de escrever no qual a figura sentada à mesa escreve (sim, há uma pessoa, uma cadeira e uma mesa, ainda que tenham vindo à tona rápido demais; definitivamente uma falha estilística do autor). Mas não culpem-se os que não já sabiam de antemão. A explicação pobre do som a que analisamos não pode ser referencial de boa descrição. Ora, mas pudera: tentar descrever uma experiência indescritível como um som ou uma cor sem utilizar-se de outros sons ou cores, ou de sensações análogas, que nunca mostrariam a verdade daquela sensação (por exemplo, dizer a um cego que o vermelho é uma cor cálida, viva, o que não faria sequer com que ele imaginasse a realidade do vermelho) é tarefa no mínimo complicada. Ainda assim, mais uma vez, pede-se desculpas ao leitor. Ora, agora estamos em condições de entender o que está acontecendo: a despeito daqueles que esperam por uma quebra do clichê, um escritor (ou escritora, também não está definido – assim como não o estão as paredes) frustrado(a) não consegue escrever, e amassa folha por folha, até lotar o chão com elas. O que ele(a) está tentando escrever permanece um mistério. O que ele(a) vê de tão errado em cada uma, entretanto, parece óbvio.
Ele ou ela é um(a) escritor(a) medíocre. Bons escritores não precisam amassar folhas! Eles olham para a folha limpa e não vêem branco; vêem já o texto pronto. São como Michelangelo, que parava de ferir a pedra quando “chegava à pele” da estátua. Além do que, bons artistas, e isso diz respeito nesse caso especialmente à literatura, não deixariam nunca que o narrador de seu próprio texto rebaixasse sua arte, muito menos deixariam que este mesmo narrador assumisse total controle d


(Texto retirado de uma folha amassada encontrada no chão.)

24 de novembro de 2008

Pegadinha!

Oras, quando é que as pessoas vão entender que eu sempre minto?

Madeleine

Duas, três, quatro voltas. Não terminou a quinta; cada vez ficava mais longe daquilo que a primeira desencadeara nele. A quem estivesse a observá-lo, da bilheteria ou de perto da roda-gigante, pareceria não mais que um imbecil. Ora, quem diria esse imbecil que daria com aquilo justamente ali? De férias em uma cidade litorânea, nunca imaginaria que veria um parque de diversões instalado. Era um parque velho, daqueles que pegam estrada, param em cidades pequenas, feiras regionais ou exposições agropecuárias, e assim obtém sustento. Estava lá, espalhado uma quadra longe da praia, mas só abriria à noite. De dia ficava desativado, mas ainda lá, com seus carrinhos bate-bate, seu trem-fantasma (talvez mais assustador assim do que quando funcionando, à noite), e seus brinquedos mais perigosos, ou aqueles que simulavam melhor o perigo, proporcionando ao organismo uma maior produção de adrenalina e cortiscosteróides que, na dose certa, proporcionariam um tipo estranho de prazer aos passageiros. Havia também, no parque, os brinquedos mais infantis, como um trenzinho em forma de centopéia, ou o brinquedo onde estava, agora, o tal imbecil.
Sentado desconfortavelmente, veria quem estivesse olhando da bilheteria ou de perto da roda-gigante, encontrava-se um homem adulto, apertado numa xícara de noventa centímetros de altura, segurando um tipo de volante instalado no centro. A chávena era toda decorada, e parecia mesmo uma xícara de porcelana, onde servir-se-ia chá. Em torno, outras, formando um círculo, numa espécie de carrossel, que ligado deveria girar. A(s) criança(s) que estivesse(m) dentro da xícara poderiam utilizar-se do aro de metal no centro do espaço interno da cúpula para girá-la em torno do seu próprio eixo, além do movimento do carrossel, o que se assemelharia, quando o brinquedo estivesse a funcionar, a um tipo de sistema solar feito de conjunto de chá. Ou uma galáxia, onde cada sistema gira em torno do centro e em volta de si próprio. Se se enchessem de leite as xícaras, poderiam inclusive chamar de via láctea. Mas só havia um homem adulto, e nenhum chá ou leite para acompanhar.
Encontrara o parque por acidente; tomara um caminho errado, um desvio, um atalho, não lhe importava agora. Andara pelo parque, perambulara pela cidade carnavalesca (no sentido europeu da palavra) completamente deserta, como se fosse um parque-fantasma, silencioso, perturbadoramente imóvel, assustador. Deparou-se, então, com as xícaras, que achou interessantes. Nunca havia visto tal brinquedo, pelo que se lembrava, e resolveu sentar numa delas, numa daquelas investidas que damos quando estamos sozinhos, sem ninguém para dizer-nos ridículos - os raros momentos em que realmente fazemos algo. A princípio, sentiu-se ridículo de fato, mas, com as pernas abertas e dobradas (pois não cabiam no pouco espaço destinado não a homens adultos, mas a crianças - ou líquidos), segurou com firmeza no círculo meio enferrujado de metal que se ligava por uma barra à superficie inferior do interior da xícara e girou, leviano.
Súbito, aquela sensação trouxe a tona, brusca, de uma só vez, uma lembrança, involuntária: era ele ainda criança quando um parque de diversões chegou a sua cidade natal. Ele só pôde visitar o parque no último dia, por motivos desimportantes, e seu pai deu-lhe um tíquete, e apenas um. Acontece que desde pequeno ele observava, na casa da avó, o conjunto de chá que era o tesouro da família, e sempre desejou ao menos tocá-lo, mas este sempre esteve encerrado na cristaleira, podendo ser visto de todos os ângulos, mas nunca alcançado. Ao ver as xícaras girando e girando a sua frente, não hesitou e gastou seu tíquete. A lembrança da sensação de estar ali, a girar, o vento frio da noite a passar-lhe pelos cabelos, a inércia cuidando para que a xícara continuasse a girar e girar cada vez mas rápido, esse conjunto sensório invadiu todo o seu ser. Este giro leviano, despreocupado do adulto imbecil (como diria seu hipotético observador) recriou o garoto, recriou o brinquedo, o pai, o parque, toda a sua cidade natal, os avós, a casa, a cristaleira, a xícara, tão parecida com aquela que estava agora a girar. E com aquela que esteve outrora também a girar, mas que agora estava novamente, tudo graças àquele simples movimento de mão.
Era ele, durante aquele momento sublime em que tudo isto lhe veio de uma vez, em forma de sensação, a própria Madeleine de Proust, mergulhada no chá cheiroso de uma história, embebida em ser e ter sido. A xícara girando, e assim torcendo também o tempo, era o movimento análogo de toda uma vida, e naquele único momento, irrepetível - pois já repetição - fora ele, ao mesmo tempo, adulto e criança.