18 de novembro de 2009

fragmento de carta

Começar a escrever é ato inusitado, impreciso. Tateio o papel como um cego, seguro a caneta como uma criança; não sei bem como começar a traçar a folha, mas sei que depois do primeiro empurrão deslizarei até o pé da página, como se fosse uma ladeira. Escrever sempre acaba sendo uma atividade extática (em êxtase), como sonhar ou se embriagar: em certo momento perde-se o controle e algo te leva pelas mãos - neste caso literalmente - até que se recobre a consciência e torne-se estático (em estadia) novamente. Nesse sentido, seu escrever apolíneo e definidor de quem você é talvez contraste e se articule bem com o meu, dionisíaco, e destruidor de quem eu sou. Escrever é algo trágico, afinal.
Li novamente sua última carta e me espantei com o quanto ela é permeada pela questão do tempo. Quando você diz que já não mais se sente como antes, não mais encontra uma continuidade entre a sua imagem solidificada e o que agora se delineia em você, confirma a sua obsessão no escrever - definir-se -, mas também a minha - vencer o tempo. Sei que você pensa que nunca vou conseguir, mas pensar em "nunca" já é pensar dentro da lógica do tempo, e não me faz sentido. Mais interessante é poder ver como a escrita, e mais especialmente a carta, exerce um papel nas duas procuras.
Recebi em casa, há pouco, uma carta que havia postado em março, mas que nunca chegou ao destino. Vagou por seis meses como uma mensagem numa garrafa, sabe-se lá por que mares, como uma capsula contendo minha subjetividade. Alguém poderia ter aberto e lido sentimentos, sensações, verdades e mentiras. Se sentiria contemplado ou emocionado, e talvez me buscasse pra retornar-me, com uma ponta de curiosidade: quem seria o náufrago que escreveu a mensagem? Mas, menos romanticamente, chegou pelo correio. Ao abrir, entretanto, arrebatou-me aquela sensação: foi como experimentar em mim meu passado, como voltar no tempo. Uma memória involuntária (aquela de Proust) fez com que meu passado não só viesse à mente mas, naquele momento, fosse real. Olhei o envelope, e a marca vermelha do carimbo não poderia expressar melhor tudo o que sinto e penso agora: "Mudou-se".
Receber esse envelope, assim como observar a sua carta - escrita em duas partes separadas por dois meses -, leva-me a olhar, agora, o mundo com um olhar mais heraclítico, a perceber melhor que de fato tudo está em constante movimento, como você disse, um acontecimento, um "estar sendo". Mas ao mesmo tempo me mostra que tudo permanece, tudo retorna: o tempo não é mais um devorador, não faz mais sentido que o passado seja perdido e futuro seja potência, linearmente, pois não existem mais essas coisas separadamente. Experimentei o passado no presente, através da escrita. Se podemos guardar o tempo em cápsulas e assim sair da linha, então o tempo como conhecemos precisa de manutenção.
Percebo agora que não "estamos sendo", não "fomos" nem "seremos". Precisaremos de um novo tempo verbal pra dizer as três coisas ao mesmo tempo, pois só assim fará sentido. Conseguir dizer isso é papel da linguagem, e acredito que principalmente da literariedade; sendo assim, continue a tentar definir-se na escrita, [NOME], parece um bom caminho.

(...)

3 comentários:

Daniel Gaivota disse...

Senti que estava há muito tempo sem escrever nada, e só tinha isso em mãos.

Beatriz Fig disse...

Ah.. eu acho que cada um deve achar o que deve para si.. Digo isso pq lembrei que tem gente (eu? nem sei mais..) que diz que o que é passado já passou, acabou e tem que olhar pra frente e bla bla bla... Mas ficar classificando , explicando e dizendo oque deve ser x é x é muito chato.

=p

Viajei..^^

Daniel Gaivota disse...

Pois é. O tempo, pra mim (e digo isso sempre, eu sei) é a maior (e talvez a única) causa de todos os problemas da existência.

Por isso querer destruí-lo.