15 de agosto de 2009

Pista de esqui (circuito para principiantes)

Nunca antes havia lhe acontecido de sentar-se ao computador e não surgir nada sobre o que escrever. Era-lhe na verdade muito simples esta atividade: bastava juntar algumas impressões adquiridas durante o dia, imagens reunidas pelos (já não tão) vigilantes sentidos, agrupá-las numa ordem interessante, elaborar um roteiro que tornasse a coisa inteligível e modificar um pouco os fatos, exagerando levemente em alguns pontos para que ficasse interessante ao leitor, mesmo que desatento ou desinteressado. Não estava nem ai para os que lhe diziam que literatura não tem uma (ou mais de uma) fórmula; a sua tinha, e ganhara milhões assim. Se não escrevia bem ou se o que escrevia não merecia ser considerado literatura não era seu problema.
O fato é que só ganharia dinheiro se escrevesse, e no momento não conseguia arrancar nem uma linha do espaço branco à frente do rosto. Deu um gole no café. Nada. Ouvira já outros reclamando sobre esse momento, sobre sentar-se para escrever e não ver as palavras brotando, não sentir que as mãos começam a escrever sozinhas, não ser levado pela escrita a ponto de nem lembrar depois de ter escrito aquilo. Pra ele sempre fora assim e aparentemente sempre haveria de ser. Escrever era como esquiar: um pequeno impulso e a brancura lisa da neve (ou do papel) encarregava-se de levá-lo até o pé dá montanha que era a página, sem precisar grandes esforços, a não ser para girar uma curva aqui ou ali.
Levantou-se, foi ao bar, despejou um gole de conhaque no café. Bebeu. Bebeu mais. Nada. O branco da tela do computador era o branco mais pálido que já vira. Começava já a desesperar-se, a barriga a sentir cócegas de ansiedade. Sentou-se com a cabeça entre as mãos, já pensando em como seria sua vida sem escrever. Poderia viver com o que já tinha, sim, mas sempre sentira-se tão bem escrevendo...
Conformou-se. Nunca mais escreveria, não era tão mal assim. Na verdade, era mesmo hora de se aposentar! Sorriu satisfeito e levantou-se, deixando o computador para trás.
Súbito, parou, girou nos calcanhares e sentou-se de novo. Usando todas as suas técnicas, toda a sua fórmula, toda a sua imposturice, lançou os dedos às teclas do teclado e de uma vez só escreveu um texto curto, sobre a sensação de não saber o que escrever.

11 de agosto de 2009

Silêncio(s).

Lá estava eu, sonolento, acompanhando ao rito massante, desgastante, a que a igreja católica faz seus fiéis passarem para qualquer que seja o fim. Meu tio foi o último dos cinco irmãos a se casar, mas logo que o fez já tratou de perpetuar seus genes. Agora, um ano depois, fomos a família toda acompanhar o batizado do guri, que é de fato uma graça.
Meu avô gostaria de estar lá, acho, mas ele morreu há alguns anos. Rui, o Cão. Era um homem no mínimo sacana, bronco, bufava, fazia piada com tudo e todos, mas ao mesmo tempo era completamente sensível. Meu tio saiu à imagem. Eu e meu irmão sofremos nas mãos dele, e até hoje sofremos um pouco. Que o filho dele nos aguarde!
O bonito nessa parte da história é que o garoto estava sendo batizado, e até o nascimento ninguém sabia o nome; meu tio disse que "veria de quê o bebê teria cara". Surpresa emocionada de todos foi chegar na porta do quarto e ler o nome do bebê inscrito: Rui.

Bem, eu estava lá na igreja, sonolento, pensando essas coisas todas, mas mal sabia onde estaria no outro dia. Lugar que não visitei por muito tempo, por não agradar aos sentidos nem à razão. A necrópole de túmulos e placas e jazigos que é o cemitério de Petrópolis chega a ser maior que algum bairro, aposto. Meio sem jeito (pois não sei qual a postura adequada a estes lugares) encontrei o caminho por entre todo aquele mármore e cheguei ao sepulcro que procurava.
Meu pai sempre contou que meu avô, que eu não conheci, era a pessoa mais boazinha do mundo. Ele era carpinteiro e fazia brinquedos pros meus tios. Nunca levantou as mãos pra bater num filho, exceto por uma vez, mas passou a noite numa cadeira chorando. Histórias de papai. O fato é que, na verdade, meu pai sim era a pessoa mais boazinha que eu conheci. Tinha uma barba e um físico ameaçadores, uma mão maior ainda, mas um nariz de batata, olhos e sorriso bobos, de quem não faria mal a ninguém. E eu, fora o porte físico (que ficou de herança pro meu irmão, acho), sai à imagem.

O cemitério, deserto, proporcionava um silêncio que não lembro ter ouvido antes, embora agora julgue sim tê-lo experimentado em dado momento. Sentado no jazigo do meu pai e avô, os sons todos desapareceram do mundo, e os movimentos também (até porque tumbas de pedra não se movem sozinhas). Tudo estagnou e o tempo parou de andar - ou correr. Só há tempo quando relativo à vida, pensei. Sensação semelhante à de dois dias antes, no momento em que o padre jogou a água na cabeça do menino. A igreja silenciou, as respirações cessaram, o mundo inteiro parou por um segundo, até o barulho da água soar. Aquele silêncio foi exatamente o mesmo do silêncio do cemitério, quando o tempo parou. Nos dois momentos, no calor da vida nova do pequeno Rui e na frieza da velha morte do meu grande pai, todo o mais deixou de soar, para ouví-los, talvez.

Acho que essa é uma das razões para minha vontade absurda de ter um(a) filho(a): enganar o Tempo. Reproduzir num futuro o que já foi passado, ainda que eu nem saiba que foi, e anular completamente a noção de presente. Um novo Rui bufando e mexendo com os netos, um vovô Zezinho revivido pelo neto que não conheceu, meu pai em mim, eu em meu pai, e os dois em meu filho - que também não vai conhecer o avô, mas que vai ouvir histórias incríveis sobre ele. E quem sabe, dessa vez, modificando um pouquinho o ciclo, a história possa ser diferente, e meu filho possa dizer, em tempo, o quanto ama seu pai.

Do passado ou do futuro pouco sei e pouco saberemos, mas nessa minha eterna (faz sentido?) batalha com o Tempo, descobri ao menos que a vida é só um ir ou vir, tanto faz o sentido. O silêncio do nascer é o mesmo do morrer, e nestes dois momentos o tempo sucumbe. O meio não interessa agora, tenho a vida pra tentar entendê-lo. Mas o silêncio dos seus extremos me fez perceber isto, que considero agora indispensável:

Nascer e morrer são, essencialmente, a mesma coisa.




Feliz dia dos pais; eu te amo.