19 de outubro de 2009

Identidade

Perdera tudo em menos de seis meses: os últimos vestígios dos pais, o emprego massante e maquinal, todo o dinheiro mais barato que tinha, as amizades mais caras, o relacionamento mais ou menos amoroso que acabara construindo, quaisquer motivações pra estudar, trabalhar ou praticar as atividades que mais gostava há alguns meses.
Ainda assim, concordou em ir àquela festa aquele dia. Os poucos amigos que lhe restavam insistiram pra que fosse, que ia se divertir, ia esquecer os problemas, rir, que podia arrumar um par, que sair de casa faz bem, que ...
Na porta do estabelecimento, o engravatado musculoso estende a mão e diz a palavra que no momento lhe é possivelmente a mais inusitada: 'identidade'.
As mãos vasculham o bolso traseiro, vãs. Não está lá. Não há documento ali. Não há nada ali. Súbito, esquece seu nome. Não fazendo nada, não tendo nada, não conhecendo ninguém mais, só tinha o próprio nome; e agora perdeu, esqueceu em casa. Sua identidade não está ali.
Anda de volta (pra onde? não sabe.), na chuva, sem saber se é homem, mulher, criança, se é a chuva ou se é o cavaleiro inexistente da armadura branca, de Calvino. Quis, andando sem saber pra onde, ser como as pessoas que andam com a identidade no bolso, mas ao apalpar, entende porque não poderia.
Armaduras não têm bolsos.

15 de outubro de 2009

"About the souffle", ou A beaucoup de souffle

Chove, e chuva sempre significa desolação. Sempre hoje. Houve já aquele tempo de brincar na chuva ou lá andar de bicicleta, chegar em casa ensopado e logo ser mandado em direção ao banheiro, em vocíferos.
Agora sou o tempo todo acossado, por tudo e todos. No tempo em que pegava chuva, a palavra 'acossado' me traria alguma sensação que não digo, pois não sei, só ouvi a palavra em adulto, talvez, e já com o signo talhado. Hoje me traz Godard, e mais ainda agora.
Porque meu quarto é o contrário do quarto que o filme mostra por mais de vinte minutos, ali com a intenção de poder filmar o íntimo, que falta(va) ao cinema, o desejo de um cinema-verdade; aqui, sem intenção: não há privança, intimidade no meu quarto, nada interior, secreto, pessoal. Não há nada aqui senão a ausência da chuva. Por muito mais de vinte minutos (ou muito menos, não se saberia), minha câmera mostraria um quarto fora do tempo, um retrato da eternidade e do nunca ter sido. Se alguém pudesse pintar um quadro meu agora, pintaria o próprio tempo.
Em vez de falar de chuva falei do filme e falei do quarto, mas sem se enganar, mais, a chuva envolve (e acossa) tudo isso. O filme, o adulto, o quarto, a desolação, tudo aqui é só não-chuva. Só quem ficou do lado de fora do quarto - que é o lugar da chuva, chuvas não entram em quartos, nem quando estão a perseguir alguém - foi a criança. Só quem não é acossado, e nem Acossado, é o garoto molhado que não sabe o que significa essa palavra e nem quem é Godard e nem quem é Truffaut.
Tenho vontade de abrir a porta e tomar um banho de chuva, mas o barulho parou, e eu tenho medo de já ter estiado. Ou pior, de não chover nunca mais.

1 de outubro de 2009

Se você, por entre as linhas

Foi até a banca de jornais e calmamente escolheu aquele volume cujo título mais interessava. Pensava, se o título é interessante, o escritor é bom. Colheu como fosse um pomo frágil, levou-o ao nariz e cheirou. Pagou. Andou até um banco próximo e abriu na primeira página, curioso, e qual foi sua surpresa ao ver ali, impressos, em tipos absorvidos pelo papel certamente antes de tê-lo tocado com as mãos e cheirado, todas as suas últimas ações, desde ir até a banca até surpreender-se. Parou de ler.
Agora está mirando algum lugar fora do papel, confuso, pensando e concluindo que acaba de presenciar uma absurda coincidência. Olha de volta para o livro e continua lendo, na expectativa desesperada de ler outra coisa senão a si mesmo, mas é inútil. O livro é sobre ele. Respira fundo, mas bruscamente expira exasperado, pois inspirou ao mesmo tempo em que leu a descrição deste mesmo ato. Testa; levanta o braço esquerdo. É, na verdade, incrível! Tudo o que está escrito corresponde exatamente ao que acontece na realidade.
Fecha o livro.
Abre-o só em casa, tendo pensado no caminho nas experiências que poderia fazer com um livro tão inusitado. Só de voltar a ler, leva um susto. Sempre que continua de onde parou, o que está escrito é exatamente o que está acontecendo no momento. Pensa por alguns instantes em como tapear o livro mágico. Folheia: está todo preenchido. Pensar nisso lhe dá calafrios, pois isso quer dizer que tudo o que irá lhe acontecer está já fixo, rígido, talhado em signos pretos que se estendem por – pensa ele – não muitas páginas. Será que, acabando o livro, morre o leitor?
Abre numa página aleatória e passa os olhos na seguinte sentença: “pulou da página dois para esta, e leu esta frase”. Fica com muito medo e volta para onde parara. Pensa em ler o que está escrito nas últimas linhas do livro pra saber seu fim, mas se não há nada depois do que leria, e se o que ele ler, invariável e inevitavelmente, acontecerá... bem, ele prefere não ler.
Estando literalmente com a vida nas mãos, ele continua lendo, quando tem uma idéia. Diz em voz alta que vai dar um salto, mas não cumpre. Pega uma caneta na escrivaninha e, com ela, risca as palavras 'mas' e 'não'; se pensa, satisfeito, vitorioso, ao concluir que o livro, afinal, predisse errado. Depois continua a leitura e vê que foi inútil; a descrição do ato segue. Se sente um pouco estúpido por ter tentado algo tão bobo.
Percebe que o primeiro capítulo do livro está quase no fim, e conjetura o que acontecerá quando um capítulo acabar. Sente um pouco de receio, mas continua lendo. Lendo tudo o que lhe acontece, o que faz, o que pensa, todas essas emoções, lendo tudo o que já sabe, agora já não tão surpreso por descrever o livro sua vida, mas sim com desolação. É como se sua vida escorresse pelos dedos; a cada letra que apreende fica mais perto do fim do livro e da sua vida. Nunca antes havia reparado em quão fugidio é o tempo, a existência, o ser.
Faltando poucas linhas para o fim do capítulo, decide. Fecha o livro e corre para o jardim. Enterra-o, vendo sumir sob a terra o título Se Você, Por Entre As Linhas. As três últimas frases do primeiro capítulo ele nunca chegará a ler.