29 de julho de 2009

texto da gaveta (sem título)

Trabalhava mecânica e ininterruptamente, como sempre. Os dedos digitando compunham uma melodia que se espalhava em trajetória angular, a se juntar a outras, formando uma enorme sinfonia. Os barulhos das teclas eram as percussões enquanto os suspiros e resmungos, os sopros, e uma marchinha murmurada nasalmente por alguém distraido fazia o papel das cordas.
Imaginou sua fuga. Levantaria bruscamente, interrompendo a sinfonia - pois uma orquestra não pode continuar a tocar se um dos percussionistas levanta-se abruptamente de sua cadeira e pára de tocar -, correria por entre as mesas e divisórias, sem pensar, derrubando o que estivesse no caminho. Desceria correndo pelas escadas, ligaria o carro, avançaria o sinal vermelho, deixaria o carro no meio da rua, subiria as escadas, agarraria seu par e os filhos e entraria depressa no carro, debaixo de palavrões e buzinas agressivas.
Tocaria pelas ruas, veredas, estradas e campos, sem parar, até chegar a algum lugar deserto, longe de qualquer resquício de civilização. Destruiria o carro, talvez o queimasse, e desfaria-se de suas roupas e relógios, e notas de dinheiro. Beberiam água de rio, fariam uma casa de madeira e palha, lavrariam a terra e caçariam para se alimentar. Os filhos não aprenderiam mais matemática ou inglês, mas sim lições de sobrevivência. Nada mais de vacinas, nada mais de aspirinas. Que seriam úteis, pois novos bebês nasceriam, visto que não haveriam anticoncepcionais.
As crianças tornariam-se adolescentes; os bebês, crianças. Haveriam novos bebês. Como é de se esperar no ciclo de vida natural dos seres humanos, a sexualidade haveria de aflorar, e seria entre os irmãos ou com os pais. Com o tempo, a linguagem se restringiria a poucas palavras, e não haveria mais escrita. Em épocas difíceis o egoismo e a inveja gerariam conflitos, e algum espertinho aprenderia a lascar uma pedra. A matança, o incesto e a barbárie iriam predominar, e tudo terminaria numa grande fogueira acesa em louvor de uma nova divindade imperativa e cruel.
Piscou. A tabela, exposta no monitor e refletida nos óculos, os números, números e mais números justamente onde estavam antes. A mão tinha parado de digitar por um instante, desequilibrando a sinfonia. Relaxou os músculos das pernas e ajeitou os óculos, como se se desculpasse para com a orquestra, e a mão, trêmula, encontrou seu tempo de volta na música.

texto da gaveta (Pêndulo)

De ansioso a entediado,
é assim a vida.
Eu, do alto do telhado,
o pensamento alto
de loucura travestida,
não cabendo mais em mim,
no auge do meu tédio,
do alto do prédio,
um salto.
Alívio enfim.

22 de julho de 2009

texto da gaveta (Morte da filosofia)

Definho.
De fino jantar à mesa posto,
recuso-o. Banqueteio Cagliostro.
Desgosto..
Desse gosto que não esqueço,
desse gosto ou desse o avesso;
Apareço?
A preço baixíssimo ponho
o apreço por qualquer sonho.
Expõe-o!
Espanta que esse um espinho
fira-me tanto, sozinho!
Definho...

15 de julho de 2009

texto da gaveta (sem título)

Formara-se recentemente, com sofreguidão. Sonhava com o magistério, mas não tinha paciência para tanta teoria. Passara, enfim, e agora, como as coisas teimam em ser, era hora de se arrumar financeiramente. Arrumou uma vaga de professor numa escolinha municipal, ganhando uma merreca, mas sabendo que é um passo de cada vez. Foi mandado para alguma instituição burocrática do governo para regularizar algo, ou fazer pedido de qualquer coisa.
"Nome?", o atendente brusco, sem tirar os olhos do formulário que preenchia. "Francisco de Oliveira", a resposta veio numa tentativa de simpatia, como um tratado de paz. A resposta à proposta de tratado foi um tiro de canhão: "Ocupação?"; "Muita!". O atendente murmurou um riso, daquele tipo que deixa o piadista sem graça. Não levantou os olhos do papel. "Sério, senhor, tem gente esperando. O que o senhor faz?". A pergunta foi bem abrangente, e, olhando pra trás, não havia ninguém esperando. "Eu dou aulas, escrevo, faço alguns trabalhos de digitação e sou músico também."
O atendente levantou os olhos e suspirou. "Tenho que botar a atividade principal. O senhor é professor?"; "Sim.", resignou-se o cansado apaziguador. "De quê o senhor dá aula?"; "Filosofia."; "Eu imaginei. Tenho um primo que faz filosofia. Ele também complica tudo, e também usa barba e cabelo comprido.".
Francisco de Oliveira terminou de fazer o que tinha ido fazer, sério, e saiu pela porta resmungando. "'Eu imaginei'... Olha só que absurdo. Funcionário público incompetente." Saiu pela rua, indignado, como qualquer filósofo se sentiria ao se descobrir tão óbvio, e foi cortar o cabelo.

7 de julho de 2009

Akasha

Resignado, acatei e resolvi arrumá-lo, mesmo que superficialmente. Meu quarto não funciona, no melhor eufemismo. Não durmo na cama: ela está coberta por roupas dobradas. Livros ocupam a superfície superior de todos os poucos móveis espalhados pelo espaço pequeno. Há uns chapéus engraçados e poucas coisas sem função alguma pelo chão. Comecei olhando dentro das gavetas de uma cômoda que nem deveria estar ali, mas que “sobrou” e veio parar no meu quarto mesmo. A gaveta superior comporta as coisas mais recentes, as últimas coisas que precisei guardar em algum lugar. Sendo assim, não apresenta novidade. A segunda de cima pra baixo contém as folhas infinitas de blocos, fichários, cadernos que outrora usava pra escrever na escola e na faculdade. Hoje não tenho paciência para isso, então aprendi a ouvir, tornando o papel, nestes momentos, útil somente para distração. A gaveta mais próxima do chão é minha favorita. Nela guardo recordações. Os bilhetes de cinema, os canhotos de passagem das viagens, umas fotos, tampinhas que me lembram uma garota, um bilhete escrito por um amigo, minhas cartas. Há nesta gaveta coisas que não faço idéia de que eram na época em que guardei. Uma chave, uma bolinha de gude, uma folha de alguma planta que é, olhada por mim, um magnífico fractal, uma gaivota de papel.
O degradê temporal das minhas gavetas é perfeito, começando no agora (ou recente), passando pelos últimos anos de estudo e culminando nas lembranças mais profundas. Mas acontece que a cômoda na verdade tem quatro gavetas. Uma terceira, entre a dos fichários e a das lembranças, se mostra diante de mim como se nunca a tivesse visto. Não chama mesmo a atenção: se tivesse que abrir alguma delas sem saber o que há dentro, com certeza não seria esta. Ao abrir, levo um choque. Entre outras coisas, que guardei e não lembrava, uns discos, um jornal, meus olhos param numa pasta transparente, com folhas brancas e de caderno. Abro e leio. Ali estão textos antigos, meus, mas que nem lembrava de ter escrito! Bons ou ruins, não importa. A gaveta funciona como uma máquina do tempo – ou, se a analogia fica melhor, uma cápsula do tempo –, pois guardou durante tanto tempo meu passado, pra me entregar agora. Tenho, por um momento, uma impressão sensível do passado, antes de minha razão tomar conta da cena e das sensações. Por um singular momento, tenho uma afecção pura, limpa de razão, do que é o tempo, em sua essência!
A terceira gaveta é a caixa de Pandora, é a Madeleine, é Akasha; me transforma num John Doe, que sabe tudo, menos o que se é. Abrir a gaveta me esvaziou, me livrou de tudo o que eu era (e o que eu tinha!), me deixou vazio para que o Tempo pudesse se apropriar do meu ser, invadir minha essência, que agora já não era definível, contornável. Ao ler os textos da pasta, pude perceber que não interessa muito mesmo o que estava escrito ali, mas sim a impressão que me causou. O conhecimento universal estava aprisionado naquela gaveta, e ao abri-la, assim como ao abrir aquela de Prometeu, escaparam dali todos os males, ou seja: tudo. E eu fiquei tão embasbacado com a sensação que nem fechei a tempo de guardar a esperança.
Recentemente descobri o que é pintar, segundo Proust: não é pintar o que se vê, pois não se vê nada, efetivamente. Também não é pintar o que não se vê, pois só pode pintar o que se vê. Pintar é, para Proust, pintar que não se vê. Um pintar que escape da razão, pintar a essência, aquilo que “vemos” antes de a razão categorizar e nomear, definindo. Do conhecimento essencial que me abarrotou ao abrir a gaveta não resta quase nada em mim, mas uma coisa permaneceu (e não é a esperança, ufa!): é a certeza de que a minha literatura deve seguir um caminho. Deve ser uma literatura de força, não de forma. Não deve retratar coisa alguma, mas deve dar ao seu leitor a mesma sensação que tive ao abrir a terceira gaveta. Levá-lo, arrastá-lo para outro lugar, deixá-lo tonto, distorcer as concepções, as definições, os contornos, dando sensações puras de tempo, espaço, ser, de mundo. Devo torcer a literatura a ponto de escapar dela, mesmo estando dentro.
Devo, parafraseando, escrever que não se lê.