31 de dezembro de 2007

Perfeição

Parte do conceito de perfeição é a possibilidade de evolução.

18 de dezembro de 2007

Épico (Parte I)

Eu, que vivo solta,
que nunca crio teia,
tenho sangue na veia
e fogo na candeia,
abandonada a qualquer sorte,
sem amigo, sem consorte,
aproveito o mote
e digo sem recorte:
pois ouçam da minha boca,
essa, que não há de mentir,
que antes que fique louca
pretendo repartir
minha história - que não é pouca -,
e pro surdo e pra mouca
não hei de repetir.

Inicio então minha prosa
(que é em verso, na verdade)
debaixo de chuva caudalosa
que no sertão seria novidade
mas que aqui era só chuvosa.
Um peregrino, vulpino,
de olhar acipitrino,
molhado como um menino,
procurando só onde ficar
achou, no bosque escuro,
detrás de grande muro
uma casa a se abrigar.
E dentro da casa, um quarto,
e do quarto, uma mulher.
Mulher de tirar o ar,
de olhar e se apaixonar,
e dentro da mulher, um mar.
Disse ela "Me ajude".
Ao que respondeu o viajante,
hesitante, ofegante,
não obstante o incrível cansaço,
"Minha cara amiga
de face rubicunda
por um prato de comida
e descanso prá corcunda,
diga o quê, e eu faço."
"Essa casa é minha trela",
disse ela,
"minha presilha e fivela.
Não posso sair dela,
pela porta ou pela janela,
e nem pela chaminé."
Olhou-a, e diante dela,
tão linda, tão bela,
ele esquece a procela
que lá fora se desvela
e se põe de pé.
...
(continua)

15 de dezembro de 2007

Lê-la

Cansado de romances previsíveis, de poemas enfadonhos, das emoções chorosas dos apaixonados frustrados e das divagações vazias dos intelectuais, encontro minha resposta literária num volume de capa interessante, mas sinopse não muito animadora. Mesmo assim, resolvo folheá-lo, e percebo pelas bordas das páginas que pouquíssimas pessoas avançaram em sua leitura para além da introdução.
Conforme avanço, envolto na atmosfera brumosa de seus primeiros parágrafos, percebo que estou completamente aliciado à trama, intimamente preso às idiossincrasias e aos requintes de sua narrativa, e essa sensação se agrava quando descubro nas plúmbeas primeiras palavras do capítulo dois que o exemplar que tenho em mãos tem aquela estrutura que tanto me agrada num romance: um oscilar entre um texto despreocupado, sem pretensões, que, leve que é, eleva seu leitor a um estado de densidade mental quase nula, e um texto pesado, apanhado de uma sensação de náusea e desolação, sensação que só será dissipada no próximo capítulo, que será marcado pela leveza do primeiro texto (só para ser novamente arrebatado pelo peso paquidérmico do segundo estilo um capítulo a frente, e assim por diante..).
Assim é que sigo devorando cada linha, cada parágrafo dela. Tentar lê-la, decifrá-la, percorrer os signos de seu corpo como se percorre as formas e o contraste do negrume dos tipos com a brancura do papel; descobrir, a cada vez que se lhe revisita, a linguagem rebuscada de algum gesto simples, algum pequeno recurso estilístico presente em alguma minúcia (somente percebido após ler pela segunda ou terceira vez o mesmo trecho), ou a ironia aristofânica de seus suspiros risonhos; supor, tolo, que se consegue tatear algo pertencente ao domínio do interior da esfera fosca de subjetividade na qual ela se encerra.
É assim a excitante experiência de tentar conhece-la: percorrer páginas e páginas do texto envolvente de sua objetividade física e mental, em cujas entrelinhas encontro o entrecho secreto que vai, capítulo a capítulo, me ensinando a embrenhar-me, a tentar alcançar o íntimo da esfera. Leio e leio, e sabendo que ela também me lê, em um impulso inseguro, tento ser o primeiro a terminar, mas isso só pra descobrir, no auge de minha leitura, que este livro, especialmente, nunca, nunca chega ao final.

12 de dezembro de 2007

(en)Contraste

Ela varria. Varria com desenvoltura, com movimentos de um atleta.. Se houvesse uma modalidade relacionada a vassouras em algum tipo de atletismo. Mas era uma cena bonita. Seus pensamentos, fato, não estariam nas folhas que varria, mas direcionados a outro vento: no marido, no que serviria de jantar à noite, nas cores que o vestido tomava ao ser sacudido pela brisa ou quem sabe até um daqueles aqueles emaranhados de pensamentos, amálgamas de imagens e informações das quais não retiramos nada específico, que são só fiapos de assuntos e afetos diversos que vão tomando, sem compromisso algum, o foco do pensar e se retiram tão logo se tornam algo de fato. Um espaguete de idéias, sem molho.
Mais parecia uma dança. Ela, a vassoura e as folhas secas, num rodopiar guiado pelo vento, fraco, é de se dizer, mas vento. Uma valsa de cores quentes, amarelos, laranjas, marrons e ocres: as folhas, o vestido, a vassoura, a pele, os cabelos da mulher, presos num coque prestes a se soltar e espalhar aqueles cabelos cor de cobre, o céu, já cedendo sua cor para que o sol pudesse apresentar seu gran finale, com um crepúsculo de vermelho e alaranjados que, diria o céu, acabava por ir longe demais. Ora, já tinha cedido parte de seu índigo espaço para o pomposo astro-rei, que com certeza era um daqueles tipos de rei gordo e baixinho, com voz engraçada, e, não obstante ter aceito a oferta que se lhe fez por educação, agora queria o céu todo! Só porque sua mera existência possibilita toda a vida no planeta, e porque se faz símbolo de excessivos significados para os humanos, se acha deveras importante. Queria ver, pensaria o céu azul - agora reduzido a uma pequeníssima faixa azul a leste -, se não houvesse a aqui esquecida atmosfera, para filtrar seus raios mortais de radiação. E ela, coitada, humildemente aceita os poucos agradecimentos que se lhe dão volta e meia... Mas quem olhasse o espetáculo não prestaria atenção às palavras resmungantes do céu, e sim nas coloridas e mudas palavras do sol, que, sem falar nada, dizia tudo.
O único detalhe destoante naquela paisagem eram os olhos da mulher. Repousando nas relaxadas pálpebras que quase não piscavam e perdidos em algum lugar, impossível de localizar espacialmente; duas gemas do verde mais verde que se poderia ver na natureza, eles pareciam velas de uma chama verde num escuro vermelho, aparecendo e sumindo conforme a mulher girava ao varrer as folhas da calçada. Era impossível a qualquer um não perceber os olhos verdes daquela mulher naquela tarde de outono. Exceto ela mesma, a mulher, que, não ficará aqui claro se por infortúnio do destino, da lógica ou da formação biológica do ser humano, não poderia nunca ver a beleza daquela cena. É o modo da natureza dizer que não se pode ter tudo. Aos que possuem toda a beleza do universo em si, resta a tristeza de não poder ser espectador dessa beleza.
Eis que, numa lufada mais forte do vento, que, já foi dito, não era forte, era uma brisa relativamente jovem, mas que, ao ouvir isso, se esforçou como que para provar que era fraco porque o queria, e só por isso, algumas folhas se elevaram no ar e uma única, das poucas ainda verdes, soltou-se de alguma árvore e foi parar bem no meio das folhas secas. O verde dos olhos da moça, no momento em que se deparou com o verde da folha, de beleza acentuada pelo contraste - e talvez, pense o leitor, pudesse se dizer também isso em relação aos olhos da moça, mas estes não: realmente eram de chamar atenção - com as folhas de coloração sanguínea arrumadas em uma pilha pela vassoura da mulher; neste momento em que se encontraram os iguais, verde e verde, ela parou por um momento de varrer e de pensar - ou não pensar, como preferir - e olhou. Quando dizem que os opostos se atraem, fala-se de uma atração muito superficial, como era a destes olhos femininos com aquelas folhas secas e a paisagem flamejante daquela tarde. Eles estavam ali, em harmonia, um ressaltando a beleza do outro, formando um quadro perfeito e digno de qualquer pintor de renome. Mas a verdade, e não digo por dizer, pois vi esta cena que lhes descrevo acima e posso falar, é que a verdadeira atração se dá quando a harmonia se quebra.
Quando se encontraram as belezas coloridas, a dos olhos e a da folha, como se finalmente os olhos pudessem ver aquilo que, como antecede, não podia, pelas complicações da anatomia humana e da lógica, eles pararam e olharam. A verdadeira atração - não aquela a que se refere o dito de que os opostos se atraem, esta já foi analisada: é somente uma atração de convenção, harmonia; a verdadeira atração se dá nestes momentos em que os olhos de uma parte, ao receberem a luz que se reflete no outro e que vem lhe tocar a pupila e imprimir uma imagem na mente, simplesmente se surpreendem. Esta verdadeira e mais forte atração não se baseia na harmonia, mas sim no abalo, na desarmonia, pois é nos momentos de surpresa, do inesperado, que de fato se olha e atenta-se ao outro, pelo qual se está sendo atraído. E isso é o que se pode chamar não só de atração, mas de paixão. Pois a paixão nada mais é do que essa surpresa e esse reconhecimento da beleza que se reflete no outro e vem tocar a sua própria beleza, as duas se tornando uma só, como é com o olho e a folha, como é com o verde e o verde, como é com o contraste e o contraste.
Mas eis que, o vento, talvez por sentir-se um bocado esquecido por este narrador - que o deveria ter previsto, afinal, é uma brisa jovem e há de agir de seu jeito pueril - e querer chamar a atenção pra si, lança uma nova lufada, que levanta a folha verde do chão, e vai levá-la para o alto, até sumir da vista dos verdes olhos que a acompanham lá do chão. Novamente, os verdes dos olhos da mulher ficam sós na imensidão avermelhada. Ela abaixa, então, a cabeça e, após um segundo, volta a varrer. Faltou dizer, é claro: a atração de que se trata aqui, esta que chamamos de paixão, não se demora como aquela atração conveniente antes apercebida. A atração harmônica pode ser eterna, se assim as partes lhe quiserem, pois a harmonia não acaba por si só. Não ocorre o mesmo, entretanto, com a surpresa. O inusitado só é inusitado por ser novo, e o que dura não pode durar sendo novo.
Há de se concluir - triste conclusão, talvez - que a paixão, portanto, somente se dá no momento em que as partes ainda se surpreendem entre si, ou seja: enquanto há a desarmonia. Porque o ser humano não busca, por sua natureza, a calmaria ou o sossego, muito menos o mesmo. Procura-se a cada momento o outro, o novo, e ainda: a beleza do outro e do novo; beleza que se reflita na sua e ao mesmo tempo sirva de espelho para que a sua também se reflita. Que sejam mesmo - por serem ambas belezas e reflexos das próprias belezas - e outro - por serem o novo.
De volta a varrer, a mulher continua sua dança, mas nem a dança agora parece tão bela, nem o crepúsculo, e nem os olhos. Sem a paixão, este que se lhes apresenta como um bom narrador não pode deixar de concluir: sem ela, a beleza não é senão simplesmente frugal.

Princípio

Esse é o blog (en)Contraste; seja bem-vindo.
A princípio, aqui serão apresentados alguns textos de minha autoria, para aqueles que gostam de lê-los. O primeiro é o texto que dá título ao blog, mas não é nem de longe um texto que esgota a proposta. O jogo contido no nome "(en)Contraste" pode ter diversas interpretações, e cada uma delas é válida, desde que você a descubra sozinho.
Gostaria que, se você lesse algum dos textos aqui apresentados, comentasse. Sei muito bem que alguns deles são ruins, mas nenhum deles está terminado. Nenhum texto nunca está. Sempre é possível riscar, rabiscar, buscar ou até rebuscar.

Divirta-se, e boa leitura!