11 de dezembro de 2008

inter-

Curioso som, o de uma folha de papel amassada – não mais em forma de esfera, mas agora em forma aleatória –, chocando-se primeiro com outra folha amassada, depois com o chão de madeira do quarto. Não pergunte pelo absurdo dessa descrição: o som é sim audível, estando os objetos dessa cena mergulhados no quase mais completo silêncio. Há, além desse som, somente dois outros, o de uma respiração, quase surda – mas perceptível para um elegante narrador onisciente, é claro (este que na verdade não sabe de nada ainda, pois o espaço abaixo, ainda que prestes a ser preenchido, é agora ainda branco); e um outro, o mais alto de todos os barulhos presentes, uma seqüência aleatória de sons violentos de algo sendo chicoteado, mas sem o eco doloroso de um chicote. Um som mais seco, como se estivessem a surrar uma superfície com uma vara. Som que seria percebido por qualquer outro personagem capacitado a ouvir dentro deste ambiente no qual a cena está encerrada: um quarto, uma sala, um cômodo qualquer, de chão de madeira e paredes e teto ainda invisíveis para um leitor. Imaginará o leitor paredes brancas, azuis, vermelhas, de madeira, de tijolos, parede alguma (o infinito)? Não é importante. Concentremo-nos no chão. Está coberto de folhas amassadas, como aquelas sobre a qual a narrativa se focou em seu princípio. Algumas muito bem amassadas, em uma esfera quase perfeita, outras quase planas ainda, só com metade amassada por uma mão nervosa. Outras, nem um nem outro: parece que a mão que as amassou teve pena, e amassou pouco. Talvez, mas ainda assim jogou-as com as outras.
O barulho mais alto, sem mais, e apenas para aqueles leitores que não deduziram – ou melhor, não induziram –, é o som da máquina de escrever no qual a figura sentada à mesa escreve (sim, há uma pessoa, uma cadeira e uma mesa, ainda que tenham vindo à tona rápido demais; definitivamente uma falha estilística do autor). Mas não culpem-se os que não já sabiam de antemão. A explicação pobre do som a que analisamos não pode ser referencial de boa descrição. Ora, mas pudera: tentar descrever uma experiência indescritível como um som ou uma cor sem utilizar-se de outros sons ou cores, ou de sensações análogas, que nunca mostrariam a verdade daquela sensação (por exemplo, dizer a um cego que o vermelho é uma cor cálida, viva, o que não faria sequer com que ele imaginasse a realidade do vermelho) é tarefa no mínimo complicada. Ainda assim, mais uma vez, pede-se desculpas ao leitor. Ora, agora estamos em condições de entender o que está acontecendo: a despeito daqueles que esperam por uma quebra do clichê, um escritor (ou escritora, também não está definido – assim como não o estão as paredes) frustrado(a) não consegue escrever, e amassa folha por folha, até lotar o chão com elas. O que ele(a) está tentando escrever permanece um mistério. O que ele(a) vê de tão errado em cada uma, entretanto, parece óbvio.
Ele ou ela é um(a) escritor(a) medíocre. Bons escritores não precisam amassar folhas! Eles olham para a folha limpa e não vêem branco; vêem já o texto pronto. São como Michelangelo, que parava de ferir a pedra quando “chegava à pele” da estátua. Além do que, bons artistas, e isso diz respeito nesse caso especialmente à literatura, não deixariam nunca que o narrador de seu próprio texto rebaixasse sua arte, muito menos deixariam que este mesmo narrador assumisse total controle d


(Texto retirado de uma folha amassada encontrada no chão.)

24 de novembro de 2008

Pegadinha!

Oras, quando é que as pessoas vão entender que eu sempre minto?

Madeleine

Duas, três, quatro voltas. Não terminou a quinta; cada vez ficava mais longe daquilo que a primeira desencadeara nele. A quem estivesse a observá-lo, da bilheteria ou de perto da roda-gigante, pareceria não mais que um imbecil. Ora, quem diria esse imbecil que daria com aquilo justamente ali? De férias em uma cidade litorânea, nunca imaginaria que veria um parque de diversões instalado. Era um parque velho, daqueles que pegam estrada, param em cidades pequenas, feiras regionais ou exposições agropecuárias, e assim obtém sustento. Estava lá, espalhado uma quadra longe da praia, mas só abriria à noite. De dia ficava desativado, mas ainda lá, com seus carrinhos bate-bate, seu trem-fantasma (talvez mais assustador assim do que quando funcionando, à noite), e seus brinquedos mais perigosos, ou aqueles que simulavam melhor o perigo, proporcionando ao organismo uma maior produção de adrenalina e cortiscosteróides que, na dose certa, proporcionariam um tipo estranho de prazer aos passageiros. Havia também, no parque, os brinquedos mais infantis, como um trenzinho em forma de centopéia, ou o brinquedo onde estava, agora, o tal imbecil.
Sentado desconfortavelmente, veria quem estivesse olhando da bilheteria ou de perto da roda-gigante, encontrava-se um homem adulto, apertado numa xícara de noventa centímetros de altura, segurando um tipo de volante instalado no centro. A chávena era toda decorada, e parecia mesmo uma xícara de porcelana, onde servir-se-ia chá. Em torno, outras, formando um círculo, numa espécie de carrossel, que ligado deveria girar. A(s) criança(s) que estivesse(m) dentro da xícara poderiam utilizar-se do aro de metal no centro do espaço interno da cúpula para girá-la em torno do seu próprio eixo, além do movimento do carrossel, o que se assemelharia, quando o brinquedo estivesse a funcionar, a um tipo de sistema solar feito de conjunto de chá. Ou uma galáxia, onde cada sistema gira em torno do centro e em volta de si próprio. Se se enchessem de leite as xícaras, poderiam inclusive chamar de via láctea. Mas só havia um homem adulto, e nenhum chá ou leite para acompanhar.
Encontrara o parque por acidente; tomara um caminho errado, um desvio, um atalho, não lhe importava agora. Andara pelo parque, perambulara pela cidade carnavalesca (no sentido europeu da palavra) completamente deserta, como se fosse um parque-fantasma, silencioso, perturbadoramente imóvel, assustador. Deparou-se, então, com as xícaras, que achou interessantes. Nunca havia visto tal brinquedo, pelo que se lembrava, e resolveu sentar numa delas, numa daquelas investidas que damos quando estamos sozinhos, sem ninguém para dizer-nos ridículos - os raros momentos em que realmente fazemos algo. A princípio, sentiu-se ridículo de fato, mas, com as pernas abertas e dobradas (pois não cabiam no pouco espaço destinado não a homens adultos, mas a crianças - ou líquidos), segurou com firmeza no círculo meio enferrujado de metal que se ligava por uma barra à superficie inferior do interior da xícara e girou, leviano.
Súbito, aquela sensação trouxe a tona, brusca, de uma só vez, uma lembrança, involuntária: era ele ainda criança quando um parque de diversões chegou a sua cidade natal. Ele só pôde visitar o parque no último dia, por motivos desimportantes, e seu pai deu-lhe um tíquete, e apenas um. Acontece que desde pequeno ele observava, na casa da avó, o conjunto de chá que era o tesouro da família, e sempre desejou ao menos tocá-lo, mas este sempre esteve encerrado na cristaleira, podendo ser visto de todos os ângulos, mas nunca alcançado. Ao ver as xícaras girando e girando a sua frente, não hesitou e gastou seu tíquete. A lembrança da sensação de estar ali, a girar, o vento frio da noite a passar-lhe pelos cabelos, a inércia cuidando para que a xícara continuasse a girar e girar cada vez mas rápido, esse conjunto sensório invadiu todo o seu ser. Este giro leviano, despreocupado do adulto imbecil (como diria seu hipotético observador) recriou o garoto, recriou o brinquedo, o pai, o parque, toda a sua cidade natal, os avós, a casa, a cristaleira, a xícara, tão parecida com aquela que estava agora a girar. E com aquela que esteve outrora também a girar, mas que agora estava novamente, tudo graças àquele simples movimento de mão.
Era ele, durante aquele momento sublime em que tudo isto lhe veio de uma vez, em forma de sensação, a própria Madeleine de Proust, mergulhada no chá cheiroso de uma história, embebida em ser e ter sido. A xícara girando, e assim torcendo também o tempo, era o movimento análogo de toda uma vida, e naquele único momento, irrepetível - pois já repetição - fora ele, ao mesmo tempo, adulto e criança.

10 de novembro de 2008

Necroses

Não faz sentido algum.

Saio de casa e piso, acidentalmente, numa formiga. Ao suspirar, de pena, incinero milhares de bactérias. Mato, mato o tempo inteiro e não só isso: morro também o tempo inteiro. Porque tudo o que nasce neste mundo hora ou outra, inevitavelmente, deixa de ser. Viver nada mais é do que um processo gradual e ascoroso de morrer. Em todas as coisas que conhecemos, as que tocamos e as pelas quais somos tocados, e inclusive no próprio toque, há morte. Tudo está morrendo, tanto quanto matando. O mundo, o palco do que chamamos vida, é uma grande esfera orgânica de mortificação, na qual uma morte colabora para todas as outras, numa cadeia doentia e miasmática.
Por que, então, chamarmos de "vida" o que não passa de uma seqüência ou um grande processo gradual e global de morte? Por que tanto colorido ao que é tão descorado, tão lúgubre, tão amargamente doloroso? Ironia? Esperança? Otimismo? Nos enganamos desde o princípio ao chamar morte de vida; e já que é assim, há alguma lógica em chamar "morte" justamente o ponto onde essa grande e eterna mortificação deixa de acontecer para algum indivíduo? Faz qualquer sentido dizer dela um desprazer, sendo que sabemos muito bem que na verdade só o é para os que ficam "vivos"?
Ora, e não tente, nem por um momento, expressar qualquer tipo de acusação simplista de niilismo (completo ou incompleto, ativo ou passivo) ou pessimismo ao que digo. Não desacredito em nada, nem intento abolir qualquer valor. Quero só chorar uma morte - não de um amigo, pois que isso ainda nunca me aconteceu -, mas de um crítico. E não só: chorar a minha própria, e a de cada um. Sabendo que é tudo o que temos; que só o que é possível é a morte. Que morte é tudo o que vamos experimentar, até nosso fim.


E ainda não faz sentido algum.

23 de outubro de 2008

Alfa e Ômega

Alberto é seu nome, e não se lhe faz desgosto. Apesar de engraçado. Abre os olhos, depois de tentar andar com eles fechados, e de não aguentar depois de um tempo. A manhã, fresca, tem cheiro de chuva passada, aroma de verão. A caminhar pela rua, e não interessa mesmo de onde vem, muito menos seu destino - até porque eu mesmo não lhe poderia dizer, por não sabê-lo -, Alberto não nos pareceria, se lá estivéssemos, a pessoa mais contente do mundo. Aliás, fechara os olhos por um motivo. A simples memória de seu trabalho, rotina desinteressante, mecânica inevitável de uma máquina irrefreável, causa-lhe asco. Andar parece a solução, mas não: a lembrança não lhe escapa do cérebro. Ao ponto em que qualquer um não mais aguentaria e saltaria de um prédio... Acha a solução! Apaga, de uma vez só, tudo o que se relaciona de algum modo com o trabalho.
Anda mais um pouco, agora aliviado, até avistar, no canto, um sujo e maltratado mendigo. Agora que está em paz, não quer em sua alma mais nenhuma perturbação: apaga o mendigo. Ainda mais a frente, crianças brincando num balanço. Apaga-as, por distração. Apenas agora está lá o balanço; apaga-o. Animado, apaga o vendedor de balões e o guarda de trânsito, apaga os carros brancos, que sempre achou sem graça, e depois todo carro. Apagar cada vez mostra-se mais divertido, e ele apaga cada jornal, cada chapéu, cada pacote de biscoito. Apaga o banco. Apaga as árvores e os animais que a parasitam, e um ou outro cachorro. Apaga seu último cigarro (admitamos que nunca o tenha acendido); apaga o amor e o ódio - apesar de pensar que, no fim, são o mesmo. Até a própria rua, a calçada, o chão, o ar, o sol, o ser, apaga tudo.
Agora, e só agora, afinal, Alberto sente-se Alberto. Ausente o mundo, ele consegue finalmente perceber-se, e não só, pode ser o que é de fato; agora, e só agora que está desvinculado de todo o resto. A totalidade (a eternidade também, pois ele apagou também o tempo) resume-se a ele, singular indivíduo. Ah, mas espere, parece que há ainda algo... Alberto terá esquecido de apagá-lo? Abrupto, e ainda sutil, um cheiro fresco, de chuva passada, indefinido; aroma de verão.

18 de outubro de 2008

Me arrependo do que escrevo.

Todo dia eu penso em deletar esse blog..
Mas eu deleto esse pensamento.


PS: Créditos do título para o Luiz (acho).

17 de outubro de 2008

para Luisa (sem título)

Gira, gira, e ao girar
lança, contente, no ar,
um arco-iris a cada volta,
do magenta ao anil.
Terpsícore rodopiante,
se é amada ou é amante
agora já pouco importa:
sumiu..

15 de outubro de 2008

Alguém sabia.

Mas ninguém assobia o que é agelasto.

13 de outubro de 2008

Intercessão; interseção.

Sempre recatado e tímido, uma certa vez, no ônibus, pensou, pensou e decidiu, num impulso - pois há certas coisas que, para fazê-las, há de enganar a si próprio ou não se deixa fazer, reprime-se; decidiu e, antes que pudesse pensar o contrário, levantou-se e apoiou na catraca, na frente do ônibus.

Atenção - disse em voz alta - todos! Nunca falei nada em público, mas estou precisando me testar. Precisando testar a mim e ao mundo, precisando saber que vocês também pensam como eu: que a vida é uma trama de conexões e desconexões, o cotidiano é uma rede de desconhecimentos, uma trança de histórias que se perpassam, ainda que não se tenha idéia de que isso ocorra, ou ao menos idéia de quais são essas histórias e de quem são os sujeitos dessas histórias. É incrivel, pensem, como nossas histórias estão interligadas por esse episódio, e como talvez já tenham se encontrado antes, quem sabe depois, mas ainda assim nós não nos conhecemos nem talvez nos conheceremos... E mesmo se nos conhecêssemos no futuro não lembrariamos uns dos outros! Não é incrível pensar nisso e saber que isso acontece o tempo todo à nossa volta?

Silêncio, depois balbúrdia. Ninguém prestou muita atenção no que ele - que foi sentar, vermelho - disse, mas não lhe fez diferença: nunca mais voltaria a encontrar nenhuma daquelas pessoas.

30 de setembro de 2008

Sinuca

Entorna, retorna, revém,
pesada, bigorna,
a culpa do que não fiz
por um triz, ou algo sem
vontade de ser feito.
Choro no seu peito
metade de ser
infeliz.

12 de setembro de 2008

(se) Jogar

Ele tinha um jogo. Em lugares lotados de gente, fixava seu olhar no de outrem, por quanto tempo agüentasse e quem – regra arbitrariamente (mas qual regra não o é?) criada por ele próprio – desviasse o olhar primeiro perdia a partida. Não tinha um nome para o jogo, diga-se rapidamente para que não se faça prolixo, já que era uma coisa que fazia sozinho e só para si. Passou, depois de um tempo, a andar com uma caneta no bolso, a marcar com traços na mão quantas vitórias obtinha em determinada viagem de metrô ou no caminho de algum lugar até qualquer outro.
Nunca ele havia perdido, e já imaginava que nunca perderia; tinha força, uma vibração austera no olhar, não vacilava. Entrou num ônibus, já lançou mão da caneta que estava, como costume, no bolso e olhou decididamente nos olhos cinzas de uma mulher sentada na janela, no meio do ônibus. Ela não desviou o olhar; eram olhos bonitos, de fato, e apesar de fixo nos olhos, o olhar dele foi atingido pelo rosto da moça iluminado de sol e recebeu uma impressão sensível de beleza inusitada. Firme, permaneceu olhando.
Dez segundos passaram, os olhares fixos, a ponte invisível que ligava os dois pares de olhos cada vez firmava-se mais; trinta segundos, quarenta. A viagem desenrolava-se, o resto do ônibus movimentava-se num amálgama de gente atrasada e suada, e os olhares há um minuto e vinte e cinco segundos se contemplavam. Ele agora, completamente encantado com a força e altivez daquele olhar esquecera-se já do jogo e olhava apaixonadamente. Nada mais importava senão aquele olhar... Basta!, ele tinha que se aproximar da mulher.
Deu um passo, olhando para não pisar no pé de ninguém, mas ao olhar de volta para a dona dos olhos cinzas, percebeu, amargurado, que ela com um sorriso maldoso na boca fazia um firme risco de caneta na palma da mão esquerda.

13 de julho de 2008

Homônimos

Acordou atrasado, pegou sua mala e o crachá de identificação e correu pra fora do apartamento minúsculo. Quase perde o elevador; outro morador segurou-lhe a porta por favor. Ele agradeceu, esbaforido, a gravata por apertar e a camisa pra fora das calças. O crachá foi ao chão, ao que o outro, sempre gentil, agachou-se e pegou, enquanto o primeiro ajeitava-se para o espelho do elevador.
- Ora, mas veja que coincidência, vizinho! Somos xarás.
- Também se chama Eduardo?
- Não é que me chamo?
- Que engraçado. - disse, sem mais o que dizer.
- A gente mora a vida inteira num prédio e não sabe o nome dos vizinhos.
- É.
Como que para salvar o primeiro Eduardo, que não sabia conduzir uma conversa - menos ainda quando atrapalhado -, o elevador parou três andares abaixo, e entrou um senhor. Pôs-se no meio dos dois, para alivio do primeiro Eduardo, pois a conversa pareceu que ia interromper. Mas o segundo era de falar, não suportaria ficar dois minutos dentro de uma caixa fechada sem comunicar-se.
- Como são as coisas, não? A gente mora a vida inteira no mesmo prédio e não repara nos outros. O senhor acredita que tenho o mesmo nome do meu vizinho?
O homem não pareceu dar muita atenção, e até ficou um tanto aborrecido por ser abordado assim, o que agradou ao primeiro, mas o segundo continuou:
- Não é, Eduardo?
- Eduardo? - o velho olhou, franzindo o sobrolho.
- Sim, somos os dois Eduardos.
- Ora, mas que coisa! Somos três então!
- Mas veja só!
Os dois pareciam duas crianças animadas com a novidade. O primeiro só queria chegar ao térreo logo. Iria ter que ouvir do chefe novamente. Como era seu dia de azar, aparentemente, o elevador parou mais uma vez, dois andares abaixo. Um homem magro, de barba e óculos entrou, livro debaixo do braço.
- Bons dias!
- Bom dia - responderam em coro o segundo e o terceiro Eduardos.
- Não vá dizer que também chama-se Eduardo, vai? - riu-se o segundo, que era o que mais falava. O homem riu-se:
- Por que?
- Imagine que coincidência incrível, entramos os três, e só os três, no mesmo elevador, e todos chamam-se Eduardo! Não é impressionante?
- É algum tipo de brincadeira? - o barbudo não parecia entender.
- Não, é verdade!
- Mas.. Como pode ser? ...Também eu me chamo Eduardo!!
O caos então instalou-se no elevador de vez. Os três gritavam exaltados que não poderia mesmo ser verdade, que aquilo era história pra ir pro Fantástico, que era digno de algum conto Kafkiano (esse foi o quarto, que parecia ser algum tipo de intelectual); Eduardo, o primeiro, só queria saber de endireitar a gravata. O elevador já não era pra ter chegado ao térreo? Diabos!, pensava.
Quando alguém já pensava em telefonar para um programa de televisão, o intelectual disse, rindo:
- Ok, amigos, desculpem! Desculpem mesmo, mas vocês estavam tão animados com a história dos nomes que não pude fazer outra coisa senão mentir.. Na verdade me chamo Roberto. Desculpem acabar com a graça.
Os outros três ficaram perplexos por um segundo, o mais velho ficou vermelho, o silêncio reinou por uns momentos ainda, até que o velho, ainda rubicundo, disse, finalmente:
- Confesso. Também não me chamo Eduardo. Fui batizado Neemias... Só entrei na brincadeira porque minha mulher vive dizendo que eu sou muito antipático, quis testar um pouco de bonacheirice.
- É... Pra dizer a verdade - o segundo falou, depois de um tempo, olhando para o primeiro - meu nome também não é Eduardo. É Juliana. - Todos olharam com estranheza e em sincronia para ele. Ela.
Eduardo não disse nada, e não diria, mesmo que a porta do elevador não tivesse aberto pela terceira vez: o térreo, finalmente. Saíram os quatro, sem falar. Pelo espelho, uma quinta pessoa poderia vê-los de costas saindo do elevador, tão diferentes, e completamente iguais.

1 de julho de 2008

186

Tinha uma profunda relação com todos aqueles que compunham sua enfadonha rotina, desde os amigos mais próximos àqueles que nem sabiam de sua existência, como o motorista do ônibus, que dizia, todo dia, Olá, ou Boa Tarde. Conjecturava em seu quarto o que as pessoas pensavam, se tinham para consigo também tal apreço, e a cada dia esforçava-se pelo amor destas pessoas. Tinha em sua mente as mais incríveis relações com estas, que tomava por verdadeiras histórias de vida. O motorista do ônibus, que haveria de ser sozinho, sem amigos e um pouco carente de atenção, sentiria, também, uma amizade incrível contida naqueles cumprimentos casuais, e o velhinho do açougue, sempre que lhe dava aquele aceno de cabeça pensava em como era sua vida, e imaginava se um dia haveria de lhe conhecer. Tudo isso poderia muito bem ser verdade, veja-se bem; o fato é que, de sua cláusura de timidez e absurda necessidade - não satisfeita em momento algum - de atenção, não poderia saber. Ainda, mantinha suas relações internamente e pré-conceituava os (des)conhecidos. Este era uma boa pessoa, aquele não. Fato é que qualquer traço de simpatia forneceria razão para que se acreditasse na bondade de alguém; muito provavelmente um assassino simpático seria uma ótima pessoa, em sua concepção.
Numa noite de Novembro morreu: suicidou-se em seu quarto, com remédios calmantes. Ao lado da cama foi encontrada uma caixa de papelão, repleta de envelopes pardos etiquetados. “Motorista do ônibus”, “carteiro”, “atendente loira e alta do caixa do supermercado”, “atendente morena com sardas do supermercado”. Cento e oitenta e seis pessoas receberam cartas no dia seguinte, relatos, roteiros de histórias que nunca haviam acontecido. Verdadeiros romances, até desentendimentos e reconciliações, vidas que só existiram em uma mente, e agora em papel, mas que fizeram-se reais conforme as pessoas as liam. As cartas deixavam claro como alguém havia tido por elas, durante tanto tempo, uma afeição infantil, bonita, como haviam sido imaginadas e como foram amadas. Alguns nunca se sentiram tão queridos, outros ficaram surpresos por serem conhecidos tão intimamente por alguém que nem sabiam quem era. Os cento e oitenta e seis compareceram ao velório. Todos choraram.
Se também tivéssemos recebido uma carta e também estivéssemos no velório, poderíamos experimentar nos aproximar da pessoa no caixão, e se prestássemos bastante atenção, veríamos claramente um rastro de sorriso satisfeito, pueril, no canto da sua boca. Estava feliz.

5 de junho de 2008

Colisão

Traduzi-la em palavras seria ultrajante. Tratando-se dela, ao menos trabalho extenuante. Trazia uma tradição de tratar-nos bem para logo nos trair. A trama, travestir-se de atraida e depois, tranquila, trancar-se sob uma trança de destrates até transformar-nos em trapos, extraviados da rota tradicional das paixões. Trouxas, é verdade, mas, trastes que eramos, depois de traçada sua traiçoeira marca, não havia outra.
Eis que, transferido de uma vila tranquila da Australia, veio pela estrada o aluno novo. Atrasado sempre, destrambelhado, tropeçando quase, entrou na nossa trincada e translatória rede de relacionamentos. Ela, já do inicio, lhe trilhou destruição: tramou, treinou, transitou e entregou-se - atriz -, mas o aluno novo, impenetrável, tratou de troçar dela, estragando a tradição. Ela travou. Tremeu. Transtornada, retirou-se.
Mais tarde, triste, no trem das três, trombou com ele, atrás da catraca, a travar dialogo, distraido, com outra estranha:
- Por um triz, Teresa, não te traio.

19 de maio de 2008

Distância

Dizia já, em poema,
uma certa poetisa,
falando do meu problema
sem saber. Analisa:
quando tenho abertos olhos
fico até bem a vontade,
mas se penso em você
fecho os olhos de saudade.

7 de abril de 2008

Novo Princípio

Oras, depois de um surto de ócio geral, de uma auto-classificação aporética e uma enfim reviravolta criativa (que foi só volta, no fim das contas), retorna o filho pródigo ao lar não tão confortável quanto o da parábola mas tão acolhedor quanto. Volto a escrever esse ano, não só porque tenho de o fazer para não chegar a um definhamento metafísico, e não só também porque resolvi pesquisar literatura em teoria - decisão de que provavelmente vá me arrepender depois, que já repudiei, e pela qual me odiei tanto, mas que é a única saida para uma exigência burocrática e ritual da academia - pela qual tenho que passar. Em outras palavras, preciso pesquisar algo em teoria, e menos mal se for uma paixão do que qualquer outra coisa. E, pra falar a verdade, estou até gostando. Apesar de todas as implicações que isso tem sobre minha ideia de literatura, formada; rocha imutável e indelével - mas, pobre, não imune ao martelo do pragma. Tudo bem, hora ou outra ela está de pé de novo.
Para comemorar esta nova fase, portanto, rebatizei o blog. Aparentemente ele nunca teve visitas regulares antes, então não será drástico a ninguém. Após tentar outras coisas (que já existem em endereços de outros blogs - os quais não me dei ao trabalho de checar se eram bons ou não), decidi por "Graptós". Não é o mais agradável nome aos ouvidos, talvez não também aos olhos, mas agradou-me a razão. Afinal, τι είναι γραμμένο, γραπτός είναι. O que foi escrito, escrito está. Espero, de verdade, que as pessoas que talvez leiam o que escrevo continuem gostando - ou passem a gostar - e apreciem a nova fase da minha areté literária (e desculpe a prepotência..)!

Boa leitura, e divirta-se!