28 de outubro de 2010

Central Vazia (ou A Solitude)

Correu até a borda da varanda, olhou lá pra baixo, na rua, observou os carros, que, desgovernados por não terem mãos nos seus volantes nem pés nos seus pedais, tinham se chocado entre si e com a paisagem. Olhou para o horizonte, os olhos vasculhando a imensidão procurando por algum movimento que não o das nuvens no alto. Correu escadaria abaixo, procurou pelo porteiro, pelo jornaleiro, mas não encontrou. Esperou um ônibus por um minuto – talvez menos – mas impaciente com o silêncio que, num zumbido ensurdecedor, lhe penetrava os ouvidos, desatou a correr pela rua, em direção ao único lugar que lhe rendia um fio, um filete, de parca esperança. Entrou, ofegante, com ânsia, na Central do Brasil. Ninguém.

Saiu pelo portão, agora já com mais calma, devagar, de cabeça baixa, e olhou para o céu como se se, só então, se conformasse, e até como se gostasse um pouco da idéia, como se fosse uma escolha própria. Era a única pessoa existente na face da Terra.

1 de outubro de 2010

Caixa de Pandora

Contra o chão da calçada o homem se arrastava e se encolhia pra se proteger das pancadas do policial. Um círculo de pessoas se formava em torno do bizarro espetáculo de violência, mas o fardado não se intimidava - na verdade o público lhe fazia aumentar ainda a convicção dos movimentos.
Batia com força, chutava com o bico do coturno o homem que, magro, sujo, de farrapos por veste e nada nos pés, não abria de jeito nenhum a mão. O punho cerrado não cedia, por mais que o policial vociferasse maldizeres e ordenasse que abrisse. A mão, por sua vez, só crispava-se mais e mais em torno da prova do crime que procurava o oficial.
A surra começou a ficar sangrenta quando entrou em cena o cassetete. O bastão subia e descia no ar, e o rosto do mendigo se desfigurava e escurecia a cada descida. Nenhum dedo da mão dele ousava afrouxar. Nenhum observador ou passante ousava ajudar, tampouco.
Eis que, depois de considerável tempo, contra o negro do chão, do sangue e da mão, que, inerte, relaxou, escapou por entre os dedos duros o segredo tão preservado: uma pequena borboleta azul voou sobre o corpo e sobre a multidão, e sumiu contra o anil do céu.