31 de março de 2009

Ânuo

Os corredores da universidade (não os atletas, os passadouros) ficavam apinhados de estudantes no início do período letivo, como era de se esperar. A falação, a correria (fazendo jus ao nome do cômodo em que se encontravam); centenas de adultos que acabavam de deixar pra trás seus ser-crianças, e que agiam como que num último impulso pueril: era o último primeiro dia de aula de suas vidas. Sendo assim, todos conheciam seus novos colegas, e com animação experimentavam aquilo que definitivamente não seria sua rotina nos próximos anos. Entre eles um homem mais velho, do alto de seus quarenta anos e quase dois metros de altura, por entre o cerrado da barba e de dentro de uma camiseta branca lisa e de um jeans, cumprimentava os calouros, recebendo-os com afeto. Dois professores caminhavam em meio aos novos e antigos alunos, em direção a uma sala onde uma reunião especial de início de período ocorreria.

- E lá está ele de novo, lá fora - começou um dos professores (um velho mal encarado e de cabelo engraçado) a reunião -, cumprimentando os calouros. Por que ele faz isso?
- Mas que mal há nisso, professor? - retrucou uma professora com cara e jeito de boazinha - Ele não nos prejudica em nada!
- Me é um pouco irritante.
- Ora, nunca proibimos ninguém de entrar nesta universidade; ele não está invadindo. Só porque ele não é aluno não quer dizer que não possa permanecer aqui. Eu só gostaria de saber o porquê de, a cada período, repetir a mesma encenação. Todos os que já estudam aqui há pelo menos um ano já sabem que ele não é filiado à universidade. O que será que ele quer?
- Sinto um pouco de pena - disse alguém que não havia falado ainda.
- Já pensou que ele pode ser maluco? - Um outro professor.
- Oras, já pensaram, senhores, que ele pode simplesmente ter uma absurda vontade de estudar na universidade? Há pessoas que de fato ficam malucas tentando - novamente a mulher boazinha do inicio da conversa -, e segundo o projeto político pedagógico....

A assembléia continuou por todo o dia, até que, finalmente, como a tempestade depois da calmaria (pois sempre citam a calmaria, mas nunca a comparação contempla a tempestade, que é a parte mais bonita da coisa), a porta da sala se abriu.

O homem dos corredores se despedia dos novos amigos calouros (que só o veriam novamente depois de um ano, quando a próxima leva de novatos chegasse - momento em que lembrariam dele e achariam graça) quando duas professoras o abordaram. Explicaram a situação, e informaram tudo o que havia se discutido, para, enfim, fazer o convite. Disseram-lhe, sorridentes, que ele ganharia uma bolsa de estudos e que poderia estudar ali nos próximos anos! A reação, entretanto, não foi a que as duas esperavam. O homem ficou imóvel, sério. Ele olhou bem as duas, o cenho franzido, como se não entendesse bem o que lhe diziam, e disse, enfim, resoluto:

- Mas por que diabos eu ia querer estudar?

20 de março de 2009

Sobre a amizade

Tive, quarta-feira passada, oportunidade de passar a noite conversando com algumas pessoas que considero muito agradáveis. Foi uma noite muito divertida, e no meio de uma das deliciosas (sempre o são) conversas, pude perceber - tardio - uma coisa sobre mim.
Ao leitor que estivesse ausente, explico: conversávamos em certo ponto sobre amizade, e uma das pessoas que lá estava discutia como tinha medo/raiva de pessoas que "roubavam" seus amigos, transformando-os em algo diferente enquanto estivessem presentes. Me posicionei dizendo que não entendia esse tipo de relação de posse que as pessoas têm em qualquer relacionamento, e neste ponto, a partir da fala dela e da minha, pude compreender muitas coisas.
Revisitando todas as minhas amizades e observando as relações de algumas das pessoas que estavam lá quarta, amigos há bastante mais tempo do que me conhecem, consegui enxergar que não possuir esse tipo de relação com as pessoas é justamente o fato que rege minha rede de amigos e meu próprio conceito de amizade. O jeito como se se estabelecem os grupos de amigos (este observado quarta-feira, por exemplo), as ligações, as ações, os contratos implícitos, eles não podem de modo algum se aplicar sem que haja essa relação de posse. Não tendo (e não demonstrando) eu esse apego, esse prender-se ao outro, as pessoas que me rodeiam não conseguem alcançar o nível mínimo de intimidade para uma amizade de fato, nem consideram-se (enganam-se todos) queridos o bastante.
Pensando bem, minha meia dúzia de amigos divide-se em dois (não tão) distintos grupos: o primeiro, daqueles que tiveram algum tipo de decepção ou desapontamento e por isso (ou não) não confiam nem se aproximam mais de mim, mas que, por termos uma relação muito forte, é impossível separarmo-nos; e o segundo, composto por pessoas com as quais não converso ou que não vejo quase nunca, mas que quando encontro ou converso é como se tivéssemos nos visto no dia anterior. Sendo assim, a condição básica das minhas amizades é, triste conclusão, a distância.
Não quero, com tudo isso, desconsiderar as pessoas que estão à minha volta e que gostam de mim tanto (ou um pouco menos) quanto gosto delas. Mas esse pequeno parágrafo resulta desimportante, acredito, pois a ninguém são soaria interessante o título de amigo sob o preço de afastar-se do objeto da amizade.
Resumindo essa agumentação pobre e patética, ela própria se faz improfícua; não se pode mesmo, discorde se quiser, esperar de alguém que não tenha amigos que escreva um bom texto sobre amizade.

19 de março de 2009

3 de março de 2009

Déjà vu

Começa assim: ele tem a ligeira impressão, que não é nada ligeira mas sim arrastada, como se demorasse mais do que o tempo que dura – definição que agradaria Bergson –, sensação no mínimo assustadora. Ele, entretanto, acha graça a princípio, afinal tem completa certeza de que aquele momento, em todos os seus detalhes, desde seus pensamentos até suas sensações e toda a construção do mundo como lhe é apresentada, já aconteceu antes. O momento seguinte, surpreendentemente, se faz exatamente do mesmo modo: como que previsto. A verdade, pensa ele, é que não previu nada, mas a sensação de já ter passado por aquilo se repete para cada evento – inclusive para esse exato pensamento. Ele sabe o que está acontecendo. Logo essa sensação vai passar (e inclusive essa certeza parece ele já ter experimentado), e a vida continuará como era antes do estranho fenômeno neurológico – como preferem os homens da ciência rotular.
Ele, enquanto pode, aproveita, acha graça, uma graça que tem certeza já ter sentido, uma perplexidade repetida, uma seqüência de eventos perturbadoramente iguais a outros que ele sabe que nunca experimentou, embora sinta que já. Esse saber certamente nunca ter experimentado aquelas coisas, com o tempo (tempo?), vai desvanecendo, e essa teoria tornando-se fraca, pois a sensação não passa. Será que ele de fato já passou por tudo isso? Viagem no tempo? Pré-cognição? Não parece caso de super-poderes.
Começa a ficar desesperado. Um déjà vu não dura mais que alguns segundos, e faz cinco minutos que o mundo, em todos as suas manifestações, se repete diante de seus sentidos. Ele tenta fazer algo inusitado, como se jogar no chão ou gritar uma palavra inventada (coisas que ele não teria feito em um possível passado muito parecido com o presente), mas ele sente que também aquilo já experimentou.
Ele entende que, se esta sensação se estender ininterrupta, até o fim de seus dias, não fará mais sentido acreditar em (ou nem sequer dizer o vocábulo) tempo. Presente, passado e futuro já não são bastantes, ou talvez sejam palavras demais agora para definir ou tentar abocar o que é tempo. Ele (o personagem, não o tempo), nesse momento, passa a existir em um outro tipo de realidade, passa a ser um sujeito fora do mundo, já que este é ontologicamente relacionado (leia-se dependente) ao tempo. Na verdade, se tudo o que ele pensa, planeja ou faz se lhe parece (e o que lhe parece é o que define sua realidade) já anteriormente feito, e esse momento “anterior” é subordinante do agora, ele não é um indivíduo ativo. Só faz aquilo que faria pois já fez. Ele não é nada, senão expectador de uma série de eventos que já presenciou antes (mas que nunca aconteceu de fato).
Ele decide, pois, que irá acabar com essa agonia, e sobe as escadas do prédio. Vai até a cobertura e, sem emoções (pois sem o inusitado, sem a sensação de descoberta, de desvelamento do desconhecido, as emoções são diferentes: mais fracas). Salta. Os poucos segundos que demora pra chegar até o chão decorrem sem grandes emoções, pois tudo aquilo não tem nada de novo. Mas a beleza da queda vertical, retilínea, do corpo está no fato de que está tudo chegando ao inicio. O momento do encontro com o chão, como o esperado, é algo que ele sente já ter experimentado. Algo que parece sóbrio, parco, mas o seguinte!
Ele finalmente sente algo que sabe nunca ter sentido, apesar de não estar de volta no mundo nem inserido de volta no tempo. Ele finalmente é; não-sendo.

Déjà vu

Começa assim: ele tem a ligeira impressão, que não é nada ligeira mas sim arrastada, como se demorasse mais do que o tempo que dura – definição que agradaria Bergson –, sensação no mínimo assustadora. Ele, entretanto, acha graça a princípio, afinal tem completa certeza de que aquele momento, em todos os seus detalhes, desde seus pensamentos até suas sensações e toda a construção do mundo como lhe é apresentada, já aconteceu antes. O momento seguinte, surpreendentemente, se faz exatamente do mesmo modo: como que previsto. A verdade, pensa ele, é que não previu nada, mas a sensação de já ter passado por aquilo se repete para cada evento – inclusive para esse exato pensamento. Ele sabe o que está acontecendo. Logo essa sensação vai passar (e inclusive essa certeza parece ele já ter experimentado), e a vida continuará como era antes do estranho fenômeno neurológico – como preferem os homens da ciência rotular.
Ele, enquanto pode, aproveita, acha graça, uma graça que tem certeza já ter sentido, uma perplexidade repetida, uma seqüência de eventos perturbadoramente iguais a outros que ele sabe que nunca experimentou, embora sinta que já. Esse saber certamente nunca ter experimentado aquelas coisas, com o tempo (tempo?), vai desvanecendo, e essa teoria tornando-se fraca, pois a sensação não passa. Será que ele de fato já passou por tudo isso? Viagem no tempo? Pré-cognição? Não parece caso de super-poderes.
Começa a ficar desesperado. Um déjà vu não dura mais que alguns segundos, e faz cinco minutos que o mundo, em todos as suas manifestações, se repete diante de seus sentidos. Ele tenta fazer algo inusitado, como se jogar no chão ou gritar uma palavra inventada (coisas que ele não teria feito em um possível passado muito parecido com o presente), mas ele sente que também aquilo já experimentou.
Ele entende que, se esta sensação se estender ininterrupta, até o fim de seus dias, não fará mais sentido acreditar em (ou nem sequer dizer o vocábulo) tempo. Presente, passado e futuro já não são bastantes, ou talvez sejam palavras demais agora para definir ou tentar abocar o que é tempo. Ele (o personagem, não o tempo), nesse momento, passa a existir em um outro tipo de realidade, passa a ser um sujeito fora do mundo, já que este é ontologicamente relacionado (leia-se dependente) ao tempo. Na verdade, se tudo o que ele pensa, planeja ou faz se lhe parece (e o que lhe parece é o que define sua realidade) já anteriormente feito, e esse momento “anterior” é subordinante do agora, ele não é um indivíduo ativo. Só faz aquilo que faria pois já fez. Ele não é nada, senão expectador de uma série de eventos que já presenciou antes (mas que nunca aconteceu de fato).
Ele decide, pois, que irá acabar com essa agonia, e sobe as escadas do prédio. Vai até a cobertura e, sem emoções (pois sem o inusitado, sem a sensação de descoberta, de desvelamento do desconhecido, as emoções são diferentes: mais fracas). Salta. Os poucos segundos que demora pra chegar até o chão decorrem sem grandes emoções, pois tudo aquilo não tem nada de novo. Mas a beleza da queda vertical, retilínea, do corpo está no fato de que está tudo chegando ao inicio. O momento do encontro com o chão, como o esperado, é algo que ele sente já ter experimentado. Algo que parece sóbrio, parco, mas o seguinte!
O seguinte é um momento completamente diferente de qualquer outro que já tenha experimentado, e por isso, é claro, nada próximo do que esperava. Ele lembra novamente de Schopenhauer, que dizia que viver é ler as páginas de um livro, e sonhar seria folheá-las. Lembra de Dunne, dizendo que possuimos a eternidade em nós (a experimentamos nos sonhos), e que no momento de nossa morte teríamos pleno acesso a ela, podendo manejar todos os momentos de nossa vida e rearranjá-los como quiséssemos. Morrer é sonhar indefinidamente?
Ele finalmente entende! O que acontece é que já havia, de fato, experimentado todos aqueles instantes, mas no momento de poder manipulá-los, decidiu: aconteceriam novamente, do exato modo como haviam sido, na exata mesma ordem, e assim, no fim, quando chegasse novamente o momento dessa escolha (pois o fim também é um momento), este também se repetiria, forçando os anteriores (e ele próprio) a se repetirem, num ciclo infinito. E assim o será por toda a eternidade.
Sua existência agora é diferente de antes, mas é mesma, pois sendo e não-sendo ao mesmo tempo é repetição (pois já era assim), mas sendo uma repetição da diferença não pode ser o mesmo que era. Repetindo as palavras de outrem, diante da beleza dessa conclusão, qualquer incoerência resulta desimportante.