27 de junho de 2011

A Onda

De velha já basta eu - é o que diz a mulher que, com um gesto ligeiro, abandona o aparelho na calçada. Já não funciona há algum tempo, o tal rádio antigo, guardado há tanto no quarto inútil onde se conservam as coisas de que já não lembram mais os moradores da casa, mas de que não tiveram coragem pra se desfazer. Hoje, não se saberá por que, a senhora dona da casa resolveu criar coragem e abandonou-o na calçada, em frente ao prédio. Pode-se imaginar que não tem mais valor sentimental, nem prático, já que há aparelhos de rádio muito mais funcionais e modernos, e o conserto de um aparelho antigo como este sairá mais caro que um dos novos, que tão melhores aparentam ser. Alguém haverá de querer este trambolho - pensa ela enquando fecha o portão do prédio atrás de si.
Pois às vezes as senhoras donas de casa têm razão, e dois homens que passam em frente ao recém-referido portão encontram com os olhos o rádio e, com os mesmos olhos a se encontrar, resolvem sem nada dizer que ele pode ser valioso. Levam-no.
Há em determinada esquina um cartaz pintado com tinta preta numa placa de madeira, onde lê-se, com dificuldade, a frase "Compro antigos - brinquedos, rádios, telefones, curiosidades e coleções". A porta na parede, logo abaixo do cartaz, leva a um cômodo minúsculo com as mais variadas espécimes de antiguidade, sendo na maioria os artigos descritos no cartaz. Os homens chamam a pessoa que está lá dentro pelo nome e ela sai. É uma mulher gorda, com uma roupa pastel e cheiro de mofo. Ela se mescla às antiguidades, e por isso os homens não a viram a princípio.
Depois da negociação, o rádio é vendido a vinte reais. É um preço justo para os homens que só tiveram o trabalho de carregá-lo por dois quarteirões e para a mulher, que não o venderá tão facilmente - pois precisa de lucro e não tem muita clientela naquela rua.
Por estas razões, no dia seguinte, ela vai até a feira de antiguidades, no centro da cidade. Entrar na feira é como andar no tempo, pois não só as coisas, mas também as pessoas que ali estão exibidas são de outras épocas , de outras cores, geralmente tendendo ao sépia. Ela chega e vai de encontro a um senhorzinho de óculos, suspensórios e boina xadrez. Ele é tão antigo quanto as coisas que vende, e pode muito bem ter utilizado alguma delas na época em que ainda eram utilizadas.
Depois da negociação, o rádio é vendido a cinquenta reais. É um preço justo para a mulher, que teve o trabalho de negociá-lo duas vezes e trazê-lo até a feira, e para o velho, que precisa de algum lucro, mas não precisou carregar o rádio e nem precisará.
Ao fim da tarde, um rapaz de óculos e mochila se aproxima do rádio. Ele parece gostar muito, se admira com o desenho antigo do aparelho, sente um cheiro que é familiar, cheiro de velhice, cheiro de avô; pensa que consertar um apetrecho destes é coisa relativamente barata, e que seria muito charmoso ouvir música nesse aparelho tão antigo. Pode-se pensar que alguns jovens não conseguem mesmo se adaptar ao tempo, e querem tanto voltar alguns anos que, por isso, se rodeiam de objetos antigos. Seria este um caso.
Depois da negociação, o rádio é vendido a setenta reais. É um preço justo para o velho, que não teve nenhum trabalho, e para o moço, que sabe que antiguidades, por serem raras, são caras.
O rapaz chega em casa com o novo artefato, limpa e leva para a sala. Chama os pais - eles hão de achar interessante, pois devem ter tido contato esse tipo de aparelho algum dia. Assim que põe os olhos no rádio, a mãe imediatamente exclama:
Olha, mas que coincidência! Coloquei ontem mesmo um rádio desses na calçada!

4 comentários:

Beatriz Fig disse...

Adorável!

Nitchii disse...

Muito criativo o texto, adorei. =]

Daniel Gaivota disse...

Muito obrigado. Se quiserem comprar, está uma barganha. ;)

Ferreira, Lai disse...

eu ando vendendo uns textos seus, admito.
talvez um dia desses alguém tente repassar pra você.