7 de abril de 2010

Anti-Edimion

Acordou depois de um sono longo, daqueles de que se acorda tonto, sem saber direito se acordou ou se nasceu. Caminhou cambaleante, apoiado na parede e na própria testa, até o banheiro, onde lavou o rosto contraido pela claridade forte do mundo externo às suas pálpebras. Café. Dormira tanto que não desejaria dormir nunca mais, assertiu em hiperbólico pensamento.
O dia aconteceu, a noite chegou. Não sentiu sono, nem com a madrugada embaçando lentamente (a madrugada é sorrateira, assim como seus transeuntes) as vidraças com seu frio úmido. Deitou, de qualquer jeito, às vezes o sono vem sem esperarmos; estamos a pensar na morte da cabrita quando sem querer os pensamentos são lentamente, vulpinamente retirados dos magros dedos da razão e ficam livres: a cabrita ressucita, o funeral se torna uma festa, o cemitério agora tornou-se sua casa (mesmo que não pareça com ela) e estamos com a cabrita, fumando passas ao rum num cachimbo de pistache. Já não tem volta: estamos dormindo.
Mas a cabrita continuou mortinha. Não se sabe se a razão resolveu segurar com mais atenção essa noite ou se aquele café lá na manhã anterior tinha sido deveras forte, mas o sono não veio. Continuou na cama, insone, a pensar "sabia que não deveria ter dormido tanto ontem". A aurora, depois de uma longa noite, dedilhou o horizonte e o dia veio, acabando com a possibilidade de talvez dormir. "Hoje à noite pelo menos durmo bem", foi o pensamento que guiou os passos até o banheiro e que passou direto pelo bule de café.
Outro dia aconteceu, outra noite chegou. Mais uma vez deitou na cama e não dormiu. Como podia ser, depois de mais de trinta e seis horas sem dormir? O corpo humano não costuma agüentar desperto por mais de quarenta horas, foi o que descobriu na enciclopédia quando desistiu de dormir. O recorde é de quatro dias e mais um pouco. A noite começava a ficar entediante. Agora sim entendia por que dormimos à noite: não se tem nada pra fazer. Leu até o amanhecer e depois de lavar o rosto, jogou o pó de café no lixo.
Mais um dia aconteceu, e mais outro, e mais duas noites passaram sem que dormisse. Algo estava errado, e não era possível que fosse a enciclopédia. O médico lhe receitou uns calmantes e uma conversa com um psicanalista. Os calmantes foram comprados e tomados, e mais um dia e uma noite passados em vigília. A situação estava ficando complicada, o médico já não acreditava na história.
Situações extremas, medidas extremas. Já não pensava com clareza, precisava dormir! Estava muito perto de enlouquecer; as mãos a tremer, os olhos a afundar-se nas olheiras pretas, sulcos redondos amarelecidos que deixavam seu rosto ridiculamente pálido e amedrontador. Não podia continuar com isso. Fechou as janelas e as portas, e colocou o colchão ao lado do fogão. Abriu todas as saídas de gás. Conforme o metano ocupava o ambiente, menos oxigênio sobrava pra ser respirado, e a figura deitada de pijamas, sob os lençóis, numa cama improvisada no chão da cozinha, pôde sentir a atividade do seu cérebro se reduzir, a névoa onírica tão conhecida começar a apoderar-se das percepções. Os olhos semicerraram-se. Finalmente.....
Mas não. Algo aconteceu, e nada pior, pensou desesperado logo depois, poderia ter lhe acontecido nesse momento: acordou do sonho.

Nenhum comentário: