24 de novembro de 2008

Madeleine

Duas, três, quatro voltas. Não terminou a quinta; cada vez ficava mais longe daquilo que a primeira desencadeara nele. A quem estivesse a observá-lo, da bilheteria ou de perto da roda-gigante, pareceria não mais que um imbecil. Ora, quem diria esse imbecil que daria com aquilo justamente ali? De férias em uma cidade litorânea, nunca imaginaria que veria um parque de diversões instalado. Era um parque velho, daqueles que pegam estrada, param em cidades pequenas, feiras regionais ou exposições agropecuárias, e assim obtém sustento. Estava lá, espalhado uma quadra longe da praia, mas só abriria à noite. De dia ficava desativado, mas ainda lá, com seus carrinhos bate-bate, seu trem-fantasma (talvez mais assustador assim do que quando funcionando, à noite), e seus brinquedos mais perigosos, ou aqueles que simulavam melhor o perigo, proporcionando ao organismo uma maior produção de adrenalina e cortiscosteróides que, na dose certa, proporcionariam um tipo estranho de prazer aos passageiros. Havia também, no parque, os brinquedos mais infantis, como um trenzinho em forma de centopéia, ou o brinquedo onde estava, agora, o tal imbecil.
Sentado desconfortavelmente, veria quem estivesse olhando da bilheteria ou de perto da roda-gigante, encontrava-se um homem adulto, apertado numa xícara de noventa centímetros de altura, segurando um tipo de volante instalado no centro. A chávena era toda decorada, e parecia mesmo uma xícara de porcelana, onde servir-se-ia chá. Em torno, outras, formando um círculo, numa espécie de carrossel, que ligado deveria girar. A(s) criança(s) que estivesse(m) dentro da xícara poderiam utilizar-se do aro de metal no centro do espaço interno da cúpula para girá-la em torno do seu próprio eixo, além do movimento do carrossel, o que se assemelharia, quando o brinquedo estivesse a funcionar, a um tipo de sistema solar feito de conjunto de chá. Ou uma galáxia, onde cada sistema gira em torno do centro e em volta de si próprio. Se se enchessem de leite as xícaras, poderiam inclusive chamar de via láctea. Mas só havia um homem adulto, e nenhum chá ou leite para acompanhar.
Encontrara o parque por acidente; tomara um caminho errado, um desvio, um atalho, não lhe importava agora. Andara pelo parque, perambulara pela cidade carnavalesca (no sentido europeu da palavra) completamente deserta, como se fosse um parque-fantasma, silencioso, perturbadoramente imóvel, assustador. Deparou-se, então, com as xícaras, que achou interessantes. Nunca havia visto tal brinquedo, pelo que se lembrava, e resolveu sentar numa delas, numa daquelas investidas que damos quando estamos sozinhos, sem ninguém para dizer-nos ridículos - os raros momentos em que realmente fazemos algo. A princípio, sentiu-se ridículo de fato, mas, com as pernas abertas e dobradas (pois não cabiam no pouco espaço destinado não a homens adultos, mas a crianças - ou líquidos), segurou com firmeza no círculo meio enferrujado de metal que se ligava por uma barra à superficie inferior do interior da xícara e girou, leviano.
Súbito, aquela sensação trouxe a tona, brusca, de uma só vez, uma lembrança, involuntária: era ele ainda criança quando um parque de diversões chegou a sua cidade natal. Ele só pôde visitar o parque no último dia, por motivos desimportantes, e seu pai deu-lhe um tíquete, e apenas um. Acontece que desde pequeno ele observava, na casa da avó, o conjunto de chá que era o tesouro da família, e sempre desejou ao menos tocá-lo, mas este sempre esteve encerrado na cristaleira, podendo ser visto de todos os ângulos, mas nunca alcançado. Ao ver as xícaras girando e girando a sua frente, não hesitou e gastou seu tíquete. A lembrança da sensação de estar ali, a girar, o vento frio da noite a passar-lhe pelos cabelos, a inércia cuidando para que a xícara continuasse a girar e girar cada vez mas rápido, esse conjunto sensório invadiu todo o seu ser. Este giro leviano, despreocupado do adulto imbecil (como diria seu hipotético observador) recriou o garoto, recriou o brinquedo, o pai, o parque, toda a sua cidade natal, os avós, a casa, a cristaleira, a xícara, tão parecida com aquela que estava agora a girar. E com aquela que esteve outrora também a girar, mas que agora estava novamente, tudo graças àquele simples movimento de mão.
Era ele, durante aquele momento sublime em que tudo isto lhe veio de uma vez, em forma de sensação, a própria Madeleine de Proust, mergulhada no chá cheiroso de uma história, embebida em ser e ter sido. A xícara girando, e assim torcendo também o tempo, era o movimento análogo de toda uma vida, e naquele único momento, irrepetível - pois já repetição - fora ele, ao mesmo tempo, adulto e criança.

12 comentários:

Daniel Gaivota disse...

Calma, post. Eu sei o quão frio e duro é ficar sem comentário algum.
Tô aqui pra te aquecer, meu filho, literalmente (literalmente).

chayenne f. disse...

hahaha
é que eu tinha ficado com preguiça de ler, a brincadeirinha deu mais ibope.

:P


dia desses eu tive vontade de ser criança de novo. até pedi pra minha mãe me levar na pracinha onde ela sempre me levava, mas ela achou estranho e não me levou a sério.
terminei o dia num buteco.

Daniel Gaivota disse...

Hauhauhau..Eu dei mole de postar os dois ao mesmo tempo.


Cara, Chay, esse foi um dos comentários mais artísticos que eu já recebi.

Daniel Gaivota disse...

É ridículo, mas eu fiquei até emocionado!

chayenne f. disse...

Cara, eu só falo merda e você acha artístico, eu hein.. seu estranho!
uheuheuehueh

É porque eu não te tenho no MSN, senão você ia receber minhas vontades súbitas em tempo real.
Tenho até medo agora de te fazer chorar com minha arte dos sentimntos inesperados. uehuehe

Daniel Gaivota disse...

Que são os mais bonitos! Eu nem sempre choro, menos ainda quando estou fora do meu período down, mas quando tô no auge do up também fico assim fragil (ou resistente, depende do ponto de vista).
Você me adicionou já lá? Me adicione, que de vez em quando (raramente) eu entro.

senshzephirus@hotmail.com


; )

chayenne f. disse...

Ai ai..

Daniel Gaivota disse...

Ai ai o quê, meu?

chayenne f. disse...

nada não, broto.
:~

Igor Dorneles disse...

Eu só li agora, mas me deu vontade de brincar com batman da coleção do meu tio que era intocvel, ele morava junto com os outros bonecos do cavaleiros do zoadiaco numa enorme estante de vidro, quando estava na minha ´vó, tinha dias que eu passava o dia olhando os brinquedos e imaginando como seria brincar com eles.

Daniel Gaivota disse...

O mais triste em se escrever sobre isso é saber que ler esse texto (e se lembrar do boneco do batman por causa dele) nunca será uma lembrança tão forte, vívida e criadora quanto tocar um boneco do batman e, involuntariamente, voltar no tempo.

O que eu fiz foi te privar dessa possível memória pura de batman, pra te dar (senão pra sempre, por muito tempo) uma memória menor.

É, fazer o quê?



(inatize) - interessante.

pra quem não sabe, inatizar é um verbo impossível, já que inatas são aquelas coisas que nascem conosco. Não dá pra "inatizar" algo.

Bela palavra de verificação.

chayenne f. disse...

Bela palavra de verificação mesmo.