19 de outubro de 2009

Identidade

Perdera tudo em menos de seis meses: os últimos vestígios dos pais, o emprego massante e maquinal, todo o dinheiro mais barato que tinha, as amizades mais caras, o relacionamento mais ou menos amoroso que acabara construindo, quaisquer motivações pra estudar, trabalhar ou praticar as atividades que mais gostava há alguns meses.
Ainda assim, concordou em ir àquela festa aquele dia. Os poucos amigos que lhe restavam insistiram pra que fosse, que ia se divertir, ia esquecer os problemas, rir, que podia arrumar um par, que sair de casa faz bem, que ...
Na porta do estabelecimento, o engravatado musculoso estende a mão e diz a palavra que no momento lhe é possivelmente a mais inusitada: 'identidade'.
As mãos vasculham o bolso traseiro, vãs. Não está lá. Não há documento ali. Não há nada ali. Súbito, esquece seu nome. Não fazendo nada, não tendo nada, não conhecendo ninguém mais, só tinha o próprio nome; e agora perdeu, esqueceu em casa. Sua identidade não está ali.
Anda de volta (pra onde? não sabe.), na chuva, sem saber se é homem, mulher, criança, se é a chuva ou se é o cavaleiro inexistente da armadura branca, de Calvino. Quis, andando sem saber pra onde, ser como as pessoas que andam com a identidade no bolso, mas ao apalpar, entende porque não poderia.
Armaduras não têm bolsos.

8 comentários:

Rafael Shimoda disse...

Hum... Isso me lembrou meu último texto...

Andou assistindo "The Wall" ??

chayenne f. disse...

delicioso, com um viés de tristeza. delicioso duplo. sem açúcar.

Gi disse...

aahhhh..

as armaduras!!

Beatriz Fig disse...

Imaginei você refletindo sobre a carteira de identidade esquecida, da identidade esquecida enquanto andava pelas ruas, sem hora para voltar, sem destino para chegar.


=)


(mega legal o cara estudar sobre o mundo do Chaves! Sinto-me menos sozinha, apesar se não ter chegado a tanto.. heheh)

Anônimo disse...

Melhor final.

Daniel Gaivota disse...

:)

Anônimo disse...

Participação rápida

Primeiro cutuca de leve, depois com mais força. Como não obtém resposta, empurra a coleção de metal que é a armadura com certa curiosidade. Ela chacoalha um pouco, mas logo volta à posição inicial. Tenta argumentar e a outra é surda. Desiste, vai-se retirando.
Tropeça. Sem querer desmonta tudo. As duas ao chão; perderam a cabeça.

Daniel Gaivota disse...

Gostei! :D