1 de julho de 2008

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Tinha uma profunda relação com todos aqueles que compunham sua enfadonha rotina, desde os amigos mais próximos àqueles que nem sabiam de sua existência, como o motorista do ônibus, que dizia, todo dia, Olá, ou Boa Tarde. Conjecturava em seu quarto o que as pessoas pensavam, se tinham para consigo também tal apreço, e a cada dia esforçava-se pelo amor destas pessoas. Tinha em sua mente as mais incríveis relações com estas, que tomava por verdadeiras histórias de vida. O motorista do ônibus, que haveria de ser sozinho, sem amigos e um pouco carente de atenção, sentiria, também, uma amizade incrível contida naqueles cumprimentos casuais, e o velhinho do açougue, sempre que lhe dava aquele aceno de cabeça pensava em como era sua vida, e imaginava se um dia haveria de lhe conhecer. Tudo isso poderia muito bem ser verdade, veja-se bem; o fato é que, de sua cláusura de timidez e absurda necessidade - não satisfeita em momento algum - de atenção, não poderia saber. Ainda, mantinha suas relações internamente e pré-conceituava os (des)conhecidos. Este era uma boa pessoa, aquele não. Fato é que qualquer traço de simpatia forneceria razão para que se acreditasse na bondade de alguém; muito provavelmente um assassino simpático seria uma ótima pessoa, em sua concepção.
Numa noite de Novembro morreu: suicidou-se em seu quarto, com remédios calmantes. Ao lado da cama foi encontrada uma caixa de papelão, repleta de envelopes pardos etiquetados. “Motorista do ônibus”, “carteiro”, “atendente loira e alta do caixa do supermercado”, “atendente morena com sardas do supermercado”. Cento e oitenta e seis pessoas receberam cartas no dia seguinte, relatos, roteiros de histórias que nunca haviam acontecido. Verdadeiros romances, até desentendimentos e reconciliações, vidas que só existiram em uma mente, e agora em papel, mas que fizeram-se reais conforme as pessoas as liam. As cartas deixavam claro como alguém havia tido por elas, durante tanto tempo, uma afeição infantil, bonita, como haviam sido imaginadas e como foram amadas. Alguns nunca se sentiram tão queridos, outros ficaram surpresos por serem conhecidos tão intimamente por alguém que nem sabiam quem era. Os cento e oitenta e seis compareceram ao velório. Todos choraram.
Se também tivéssemos recebido uma carta e também estivéssemos no velório, poderíamos experimentar nos aproximar da pessoa no caixão, e se prestássemos bastante atenção, veríamos claramente um rastro de sorriso satisfeito, pueril, no canto da sua boca. Estava feliz.

3 comentários:

Ferreira, Lai disse...

Tenho medo de semi-conhecidos.

Resolvi explorar o blog; antes eu já tinha feito isso, mas não tão fundo. Não que agora o esteja fazendo, eu sou muito impaciente.


E não conseguiria fazer isso de deixar cartas com histórias para serem lidas depois da minha morte.
Nem a caça ao tesouro.


(strishi)

Daniel Gaivota disse...

Legal! Você vai descobrir que tem umas coisas minhas muito ruins por ai.

Meu post preferido ever é o "Lê-la". fikdik. (¬¬)

Só pra constar, como você sabe, esse personagem, como todos os outros, sou eu!
^^





Que tristeza, não tenho uma palavra de verificação. Será que é pq sou autor do blog? Mas eu lembro que já coloquei p.v. neste blog.

Droga.

Beatriz Fig disse...

Esse texto me fez lembrar o que aconteceu hoje: um cara entrou numa escola e saiu atirando nas crianças..

Sei lá.. fiz essa relação.. nem sei mais o que dizer rs Vou entrar na máquina do tempo e continuar o comentário no post do dia 7 de 04 de 2011. rss