12 de setembro de 2008

(se) Jogar

Ele tinha um jogo. Em lugares lotados de gente, fixava seu olhar no de outrem, por quanto tempo agüentasse e quem – regra arbitrariamente (mas qual regra não o é?) criada por ele próprio – desviasse o olhar primeiro perdia a partida. Não tinha um nome para o jogo, diga-se rapidamente para que não se faça prolixo, já que era uma coisa que fazia sozinho e só para si. Passou, depois de um tempo, a andar com uma caneta no bolso, a marcar com traços na mão quantas vitórias obtinha em determinada viagem de metrô ou no caminho de algum lugar até qualquer outro.
Nunca ele havia perdido, e já imaginava que nunca perderia; tinha força, uma vibração austera no olhar, não vacilava. Entrou num ônibus, já lançou mão da caneta que estava, como costume, no bolso e olhou decididamente nos olhos cinzas de uma mulher sentada na janela, no meio do ônibus. Ela não desviou o olhar; eram olhos bonitos, de fato, e apesar de fixo nos olhos, o olhar dele foi atingido pelo rosto da moça iluminado de sol e recebeu uma impressão sensível de beleza inusitada. Firme, permaneceu olhando.
Dez segundos passaram, os olhares fixos, a ponte invisível que ligava os dois pares de olhos cada vez firmava-se mais; trinta segundos, quarenta. A viagem desenrolava-se, o resto do ônibus movimentava-se num amálgama de gente atrasada e suada, e os olhares há um minuto e vinte e cinco segundos se contemplavam. Ele agora, completamente encantado com a força e altivez daquele olhar esquecera-se já do jogo e olhava apaixonadamente. Nada mais importava senão aquele olhar... Basta!, ele tinha que se aproximar da mulher.
Deu um passo, olhando para não pisar no pé de ninguém, mas ao olhar de volta para a dona dos olhos cinzas, percebeu, amargurado, que ela com um sorriso maldoso na boca fazia um firme risco de caneta na palma da mão esquerda.

9 comentários:

Anônimo disse...

Esse é o perigo de sempre se deixar apaixonar...

Daniel Gaivota disse...

É verdade.
Mas quão sem graça seria não se deixar?

chayenne f. disse...

o mais sem graça possível e mais ainda, certamente.

nunca consegui marcar um tracinho sequer, eu acho.
2° item da minha lista de novos afazeres, depois de abraçar um pipoqueiro.

Daniel Gaivota disse...

Esse personagem, como todos os outros, sou eu.

Ferreira, Lai disse...

Ah, você também escreve pra você.
Acho que todo mundo que escreve, o faz para si mesmo, consciente ou inconscientemente.

Daniel Gaivota disse...

Acho o contrário. Tudo o que se escreve (até o que se escreve e esconde, tipo diário) é porque queremos que seja lido. As coisas que eu não quero que ninguem tenha acesso eu guardo na cachola.

Acho que escrever na verdade é deixar vazar um pouco de si. Algo que você tenta mostrar o tempo todo pra todo mundo e quer desesperadamente que alguem (finalmente) perceba.

Daniel Gaivota disse...

Isso foi super Héstia.

É porque era meu arquétipo antes de me tornar Deméter de vez.

Ferreira, Lai disse...

Caraca.
4 de novembro.

Daniel Gaivota disse...

Que que tem?